domingo, 31 de janeiro de 2021

Magia em Roma

 

Segundo Raymond Bloch “no princípio e no decurso da história de Roma, numerosos são os vestígios de magia e de misticismo elementar; não havia nenhum nascimento que não fosse protegido por uma divindade, nenhum crescimento que não tivesse os seus numina”, e assim também as atividades agrícolas como o arroteamento do solo, passagem do arado, semeadura, germinação do grão, colheita, tudo era regido pela crença nos numina, ou seja, pelos “poderes divinos” que no princípio era simbolizado pelo culto dos lares. [1] Derek Colins mostra que o conceito de magia havia se confundido com maleficum – crime, calúnias ou envenenamentos, de modo que não se observa na legislação romana mais antiga como as Doze Tábuas qualquer condenação direta a feitiços mágicos.[2] A lei Cornelia previa a condenação de  assassinos e envenadores – sicariis et veneficiis e assim mutos proaticntes de magia foram condenados. Não estavam claras as fronteiras entre as honras e rituais devidas aos deuses (religio) e aquilo que poderia ser considerado como excessivo a que os romanos chamavam de superstitio (significado diferente do atual superstição) e que Cicero distingue da religio.[3] Em 158 d.c. Apuleio foi acusado de magia e em sua defesa alegou que suas práticas eram de culto religio usual. No Asno de ouro, Apuleio se refere aos encantamentos usados por uma maga que incluíam ”todo o tipo de incensos aromáticos, placas de metals com inscrições secretas, vários pedaços de cadáveres, sangue das vítimas e caveiras de criminosos mortos em combate com as feras no anfiteatro”.[4] Com Agostinho no século IV já há uma associação direta da supestitio como as magicae artes, ou malae artes pactuadas com demônios, ou seja, associadas a algum malefício. Com o Codigo Teodosiano (438 d.c.) a condenação aos magos é clara: “Deve ser punido e vingado de modo merecido com as leis mais severas o conhecimento (scientia) daqueles que, com auxílio das artes mágicas (magicae artes) ou ameaçam a segurança de alguém ou fizeram com que mentes castas se voltassem à luxúria”.[5]



[1]BLOCH, Raymond; COUSIN, Jean. Roma e o seu destino. Rio de Janeiro:Cosmos, 1964, p.179

[2]COLLINS, Derek. Magia no mundo grego antigo, São Paulo: Madras, 2009, p. 209

[3]COLLINS, Derek. Magia no mundo grego antigo, São Paulo: Madras, 2009, p. 215

[4]FUNARI, Pedro. Roma, vida pública e vida privada, São Paulo: Atual, 1993, p. 19

[5]COLLINS, Derek. Magia no mundo grego antigo, São Paulo: Madras, 2009, p. 237



A invenção da perspectiva

 

Embora Anaxágoras e Demócrito tenham escrito tratados de teoria da perspectiva[1], para Murillo Cruz será apenas após o século XII com a inauguração nas artes de uma atribuição lógica de identidade entre o ser a imagem, uma crença na representação das coisas descritas como fidedignas ao olhar, com a invenção de um sistema de projeção geométrica por Brunelleschi (1377-1446)[2], Leon Battista Alberti (1404-1472)[3] no Tratado sobre a Pintura[4] de 1436 e Antonio Manetti (1423-1497)[5] do qual são conhecidas duas experiências importantes para a perspectiva, a pintura de duas pequenas tábuas ópticas, que hoje se encontram perdidas). George Sarton observa que Alberti em De re aedificatoria de 1435 descreve um dispositivo chamado velo para facilitar o desenho de objetos em perspectiva, possivelmente uma técnica que compartilhava com Brunelleschi sendo Alberti o primeiro a escrever sobre a técnica.[6] Paolo Uccello (1397-1475) que publicou Estudo em perspectiva de um cálice de 1430. George Sarton, contudo, revela que não há certeza de que este livro de fato tenha sido escrito embora um desenho de um toro poliédrico chamado mazzocchio feito por Uccello mostra que ele dominava a técnica de perspectiva (na figura).[7]

No século XV é que se prepara e introduz a racionalização e geometrização/metrificação da imagem [8], como mostram vários exemplos: Masaccio [9] (1401-1428) no fresco da Santíssima Trindade em Santa Maria Novella de 1426[10], Piero della Francesca (1410-1492) com a Flagelação de Cristo de 1450 [11], Leonardo da Vinci (1452-1519) em notas manuscritas e no tratado póstumo Trattato della pintura [12] publicado somente em 1651 em Paris, Albrecht Dürer (1471-1528, que desenvolveu a perspectiva linear [13]), Gerardus Mercator (Gerhard Kremer, o nome Mercator é forma latinizada [14], 1512-1594, cuja projeção cilíndrica ou mapa de Mercator de 1569 constitui outra aplicação da geometria, para ajuda aos navegadores na construção de mapas[15], muito embora a nova técnica tivesse maior difusão apenas no século XVII [16]), Girard Desargues [17] (1591-1661, que lançou os fundamentos da geometria projetiva em 1639), Piero della Francesca (1415-1492, em De prospectiva pingendi, ele introduz o conceito de ponto de fuga [18]), Lorenzo Ghiberti (1378-1455, autor da famosa perspectiva em bronze das portas do Batistério de Florença) [19]. Piero dela Francesca no De prospectiva pingendi argumenta: “Muitos pintores censuram a perspectiva, porque não entendem a força das linhas e dos ângulos que a partir dela se produzem, com os quais de descreve comensuradamente cada contorno e traço. Porém parece-me que devo mostrar o quanto essa ciência é necessária à pintura”.[20]

[1]DURANDO, Furio. A Grécia antiga, Barcelona:Folio, 2005, p.135

[2]MORTIMER, Ian. Séculos de transformações. Rio de Janeiro:DIFEL, 2018, p. 157

[3]McCLELLAN III, James; DORN, Harold. Science and technology on world history: an introduction. The Johns Hopkins University Press, 1999, p.205

[4]PHILIPPS, Ellen, Viagens de descobrimento 1400-1500, São Paulo:Time Life, 1991, p.68

[5]BOORSTIN, Daniel. Os criadores, Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1995, p.488

[6]SARTON, George. Six wings, men of science in the Renaissance, Bloomington: Indiana University Press, 1957, p. 24

[7]SARTON, George. Six wings, men of sicnce in the Renaissance, Bloomington: Indianaa University Press, 1957, p. 24

[8]RONAN, Colin. História Ilustrada da Ciência: Da Renascença à Revolução Científica. v.3, São Paulo:Jorge Zahar, 2001, p.59

[9]CORNELL, Tim; MATHEWS, John. Renascimento v.I ,Grandes Impérios e Civilizações, Lisboa:Ed. Del Prado, 1997, p. 64

[10]CORNELL, Tim; MATHEWS, John. Renascimento v.I , Grandes Impérios e Civilizações, Lisboa:Ed. Del Prado, 1997, p. 69

[11]PHILIPPS, Ellen, Viagens de descobrimento 1400-1500, São Paulo:Time Life, 1991, p.68

[12]SARTON, George. Six wings, men of sicnce in the Renaissance, Bloomington: Indianaa University Press, 1957, p. 24

[13]STEWART, Ian. O fantástico mundo dos números, Rio de Janeiro:Zahar, 2016, p.328

[14]DERRY, T.; WILLIAMS, Trevor. Historia de la tecnologia: desde la antiguidade hasta 1750, Mexico:Siglo Vintuno, 1981, p.334

[15]HALE, John. Idade das explorações. Biblioteca de História Universal Life, Rio deJaneiro:José Olympio, 1970,p.70; BOORSTIN, Daniel. Os descobridores. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1989, p. 255

[16]DELUMEAU, Jean. A civilização do Renascimento, Lisboa:Estampa, 1984, v.I, p.172; TATON, René. A ciência antiga e medieval, tomo I, livro 2, Sâo Paulo:Difusão Europeia, 1959, p. 159; VASCONCELLOS, Ernesto; GAMEIRO, Alfredo; MALHEIROS, Carlos. In: História da Colonização Portuguesa no Brasil, Edição Monumental Comemorativa do Centenário de Independência do Brasil, Porto, Litografia Nacional, 1921, Capítulo 2: A arte de navegar dos portugueses, p. 93

[17]RONAN, Colin. História Ilustrada da Ciência: Da Renascença à Revolução Científica. v.3, São Paulo:Jorge Zahar, 2001, p.108

[18]SARTON, George. Six wings, men of sicnce in the Renaissance, Bloomington: Indianaa University Press, 1957, p. 24

[19]BRONOWSKI, J. A escalada do homen, São Paulo:Martins Fontes, 1979, p.179

[20]ROSSI, Paolo. Os filósofos e as máquinas. São Paulo:Cia das Letras, 1989, p. 33



O paradoxo das políticas de Pombal

 

A renovação cultural promovida pelo marquês de Pombal permitiu a maior penetração das teses iluministas em Portugal apesar de seu governo despótico. O cônego Ribeiro Sanchez expõe este paradoxo: “Este Ministro quis um impossível político; quis civilizar a Nação e ao mesmo tempo fazê-la escrava: quis espalhar a luz das ciências filosóficas e ao mesmo tempo elevar o poder real ao despotismo”.[1] Apesar da renovação promovida por Pombal nos estudos da Universidade de Coimbra, Bernardo Pereira de Vasconcelos ao se formar em 1814 refere-se a um ensino conservador: “O direito de resistência, esse baluarte da liberdade era inteiramente proscrito e desgraçado de quem dele se lembrasse. Estas e outras doutrinas se ensinam naquela universidade, e por que ? porque está inteiramente incomunicável com o resto do mundo científico. Ali não se admitem correspondências com as outras Academias; ali não se conferem os graus senão àqueles que estudarem o ranço dos seus compêndios, ali estava aberta continuamente uma inquisição, pronta para mandar às chamas todo aquele que tivesse a desgraça de reconhecer qualquer verdade, ou na religião, ou na jurisprudência ou na política. Daí vinha que o estudante que saída da Universidade de Coimbra devia, antes de tudo, desaprender o que lá se ensinava, e abrir nova carreira de estudos”.[2]

[1] COSTA, Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil, Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1967, p. 57; BOXER, Charles. O império Colonial português, Lisboa:Edições 70, 1969, p.190

[2] SODRÉ, Nelson Werneck. A história da imprensa no Brasil, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p. 118



Enciclopédia francesa e o conhecimento dos artesãos

 

Paul Hazard sugere a hipótese de que a Enciclopédia francesa foi um trabalho da maçonaria, onde muitos mantinham zelosamente seus segredos profissionais[1]. A Enciclopédia, nesse sentido, representou uma quebra de paradigma ao dar visibilidade a tais conhecimentos. As pranchas da Enciclopédia contribuíram para codificação de conhecimento tácito antes de domínio exclusivo dos artesãos [2]. Para o verbete sobre agricultura na Enciclopédia, Diderot consultou o fazendeiro inglês Jethro Tull [3]. O próprio Diderot era filho de artesão [4]. Ao defender uma pesquisa científica capaz de aplicações práticas, os enciclopedistas, reconhecendo as informações dos artesãos franceses “anotando o que eles diziam”, segundo Paolo Rossi, colocavam-se como “continuadores da reforma iniciada por Francis Bacon”. [5] Para Paolo Rossi o conhecimento dos técnicos artesãos é resgatado por Francis Bacon: “os métodos, os procedimentos, operações e linguagens das artes mecânicas haviam se afirmado e aperfeiçoado fora do mundo da ciência oficial, num mundo de engenheiros, arquitetos, artesãos qualificados, construtores de máquinas e equipamentos. Esses métodos, procedimentos e linguagens agora devem se tornar objeto de consideração, reflexão e estudo”.[6] Diderot lista um total de 250 tipos profissões de artesãos o que demonstra a especialização progressiva da técnica.[7] As enciclopédias de Heinrich Alsted [8] e Zara também destacam o papel das artes mecânicas [9]. A enciclopédia de Diderot causou escândalo aos jesuítas diante da ênfase ao conhecimento técnico. O Dictionnaire français de Pierre Richelet em sua primeira edição de 1680 já exprimia este desprezo às artes técnicas ao definir o verbete “mecánique” como “contrário ao que é liberal e honroso, tem o sentido baixo, grosseiro, pouco digno de uma pessoa honesta”.[10]



[1] MOUSNIER, Roland; LABROUSSE, Ernest. História Geral das Civilizações: o século XVIII: o último século do Antigo Regime, tomo V, v.1, São Paulo:Difusão Europeia, 1968, p.89

[2] BELFANTI, Carlo Marco. Guilds, patents, and the circulation of technical knowledge. Technology and Culture, v.45, julho 2004, p.584

[3] BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento, Rio de Janeiro:Zahar, 2003, p.138

[4] BURKE, Peter. O polímata, São Paulo: Cia das Letras, 2020, p. 149

[5] ROSSI, Paolo. Francis Bacon: da magia à ciência. Curitiba:Ed. UFPR, 2006, p.126

[6] ROSSI, Paolo. Os filósofos e as máquinas. São Paulo:Cia das Letras, 1989, p. 103

[7] BRAUDEL, Fernand. Civilização material e capitalismo, séculos XV-XVIII, Rio de Janeiro:Cosmos, 1970, p.358

[8] ROSSI, Paolo. Os filósofos e as máquinas. São Paulo:Cia das Letras, 1989, p. 108

[9] BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento, Rio de Janeiro:Zahar, 2003, p.108

[10] ROSSI, Paolo. Os filósofos e as máquinas. São Paulo:Cia das Letras, 1989, p. 29



sábado, 30 de janeiro de 2021

O cálculo de longitude por Américo Vespúcio

 

Nas viagens de Américo Vespúcio em 1499 ele narra que “quanto a latitude, confesso que encontrei tanta dificuldade em determina-la que tive grande trabalho para avaliar a distância leste oeste que percorrera. O resultado final de meu labor foi que não achei nada melhor que fazer do que vigiar e fazer observações à noite da conjunção de um planeta com outro, e especialmente da conjunção da lua com os outros planetas, porque a lua é mais veloz do que qualquer outro planeta. Depois de ter feito experiências durante muitas noites, numa delas, a de 23 de agosto de 1499 houve uma conjunção da lua com marte o que segundo o almanaque para a cidade de Ferarra deveria ocorrer à meia noite ou meia hora antes. Verifiquei que quando a lua nasceu hora e meia depois do por do Sol, o planeta passara essa posição no Oriente”.[1] Na carta de Vespúcio a Lorenzo de Medici de 18 de julho de 1500, mas publicada pela primeira vez por Bandini em 1745 ele descreve a medida da conjunção de Marte com a lua e compara com os dados das Efemerides de Regiomontanus tomada em Nuremberg. No entanto Vespúcio assume a medida feita em Cadiz e não em Nuremberg, levam a Luciano Pereira da Silva a considerar a carta como apócrifa pois Vespúcio como conhecedor de astronomia náutica não cometeria um erro tão crasso.[2]



[1]BOORSTIN, Daniel. Os descobridores, Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1989, p.231

[2]VASCONCELLOS, Ernesto; GAMEIRO, Alfredo; MALHEIROS, Carlos. In: História da Colonização Portuguesa no Brasil, Edição Monumental Comemorativa do Centenário de Independência do Brasil, Porto, Litografia Nacional, 1912, capítulo 2: A arte de navegação do portugueses, p. 86



Escravos tigres

 

Nas casas urbanas não havia banheiro sendo substituído por retretas, cadeiras especiais onde se posicionava um urinol ou outro recipiente para que posteriormente seu conteúdo fosse despejado em barris carregados pelos “tigres”, escravos encarregados da tarefa de lançar tal material em lagoas e rios próximos da residência. [1] Segundo Laurentino Gomes: "A pele ficava listrada, com alternância de faixas pretas e outras descoloridas pela ação química dos dejetos. Por isso, esses escravos eram conhecidos como tigres".[2] Os tigres eram muito comuns na capital Rio de Janeiro até a década de 1860, tendo registros em Recife até 1882. Para Gilberto Freyre a facilidade de dispor de tigres e seu baixo custo retardaram a criação das redes de saneamento nas cidades litorâneas brasileiras. Luis felipe de Alencastro contudo observa que embora pobres, a mão de obra dos tigres ou tigreiros não era tão barata.[3] A figura mostra Charge de Henrique Fleiss na Semana Ilustrada nº5 de 1861 mostra escravos conhecidos como tigres despejo dos dejetos domésticos na Praia de Dom Manoel, na atual Praça XV.



[1]MENDES, Chico; VERÍSSIMO, Chico; BITTAR, William. Arquitetura no brasil de Cabral a Dom João VI, Rio de Janeiro;Imperial Novo Milênio, 2009, p. 146

[2]GOMES, Laurentino. Escravidão, v.I, São Paulo: Globo, 2019

[3]ALENCASTRO, Luiz Felipe (org.). História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997



Moeda do Brasil: Joe

 

Em 1755 o reverendo John Wesley escreve Serious thought occasioned by the great earthquake at Lisbon em retrata uma crença generalizada, certamente exagerada, a respeito da opulência da Corte de D. João V “Os mercadores que viveram em Portugal informam-nos que o rei tinha um grande edifício cheio de diamantes e mais ouro armazenado, em moeda e sem ser em moeda, do que todos os outros príncipes da Europa juntos”.[1] Durante o século XVIII as moedas luso brasileiras de 4000 reis e de 6400 reais em ouro [2], conhecidas como Joe abreviatura de Josephus em referência a D. José I (1751-1777), tornaram-se moedas bastante correntes na Inglaterra e nas colônias britânicas nas Américas. Os Johannes foram Pesos Monetários para moedas de ouro de D. João V (1705-1750), algumas vezes confundido com o Joes, sendo o peso monetário do reinado de D. José I (1751-1777). O múltiplo do Joe era o ‘Double Joe’ (Duplo Joe) equivalente a 12800 reis. [3]


[1]BOXER, Charles. O império Colonial português, Lisboa:Edições 70, 1969, p.167

[2] https://en.numista.com/catalogue/pieces17041.html

[3] FERREIRA, Jaime. Johannes e Joe’s, Pesos monetários do século XVIII. NVMMVS, 2ª S., XXXVII, Porto, S.P.N., 2014, https://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/13592.pdf



Iohannes Comenius e a fragmentação do conhecimento

 

O papel do conhecimento técnicos dos artesãos e das oficinas já havia sido destaca por Iohannes Comenius (1592-1670) que em sua obra Grande Didática defende que “o que deve ser feito deve ser aprendido pela prática. Os artesãos não atrasam seus aprendizes com teorias, mas põem-nos a fazer trabalho prático num período inicial; assim aprendem a forjar, forjando; a entalhar, entalhando; a pintar, pintando e a danças, dançando. Nas escolas, pois, deixai os estudantes aprender a escrever, escrevendo; a falar, falando; a cantar, cantando e a raciocinar, raciocinando [...] Nada deveria ser aprendido somente por seu valor na escola, mas por seu uso na vida. O que quer que seja ensinado deveria ser ensinado como sendo de aplicação prática na vida cotidiana e de algum uso definido, isto é, o aluno deveria compreender que o que ele aprende não é extraído de alguma utopia ou retirado de ideias platônicas, mas é um dos fatos que nos cercam, e que um conhecimento adequado do mesmo será de grande auxílio na vida”.[1] Para o polímata Comenius no século XVII “tudo está em pedaços, toda a coerência se acabou”,  a especialização do conhecimento havia levado ao que chamou de “dilaceração das disciplinas” pois o conhecimento se perdeu em meio a sua fragmentação: “os metafísicos cantam consigo mesmos, os filósofos naturais entoam seus próprios louvores, os astrônomos dançam sozinhos, os pensadores éticos fazem suas próprias leis, os políticos estabelecem seus próprios fundamentos, os matemáticos se regozijam com seus próprios triunfos e os teólogos governam para seu próprio benefício”.[2]



[1]EBY, Frederick. História da educação moderna. Porto Alegre:Globo, 1976, p.166, 168

[2]BURKE, Peter. O polímata, São Paulo: Cia das Letras, 2020, p. 131



sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

A medida da longitude por Colombo

 

O método direto para o cálculo de longitude usado por Colombo exigia dois relógios. Um deles definia a hora exata no ponto de origem, supondo que se soubesse a longitude nesse local, e o outro registrava a hora em sua posição no mar por exemplo consultando-se o momento em que o sol se colocava o ponto mais alto de sua curva no lugar e que se posiciona o navio, isto é, ao meio dia. A diferença entre as duas marcações indicava a posição longitudinal: cada quatro minutos de diferença eram traduzidos para um grau de longitude, ou 68 milhas no equador. No entanto, com a tecnologia da época e uma precisão de vinte minutos por dia, as medidas tornavam-se praticamente inúteis em poucos dias de viagem. [1] Na viagem de Colombo cabia a um grumete virar uma ampulheta de meia em meia hora para saber o horário exato. Para medir a velocidade do barco atavam-se nós com intervalos de 7 braças a uma corda atada a uma barquilha que flutuava à popa de modo que o marinheiro contava o número de nós que saíam enquanto uma ampulheta media meio minuto. Se saíam 6 nós no intervalo então o navio estava numa velcidade de 6 milhas náuticas por hora.[2] Em dia de mau tempo a passagem da areia sofria perturbações que afetavam a medida [3]. Com as efemérides de Regiomontanus calculadas para o meridiano de Nuremberg publicada em 1475 ou pelo Almanach perpetuum de Zacuto calculado para o meridiano de Salamanca publicado em 1496, Colombo tinha uma alternativa para o cálculo de longitude, além de impressionar os índios ao prever um eclipse lunar.[4] Numa folha do Libro de las Profecias, Colombo escreve suas anotações sobre os eclipses lunares, uma em 1484 e outra em 1504.[5]



[1] JOHNSON, Steven. Como chegamos aqui, Rio de Janeiro:Zahar, 2015, p.142; DERRY, T.; WILLIAMS, Trevor. Historia de la tecnologia: desde la antiguidade hasta 1750, Mexico:Siglo Vintuno, 1981, p.298

[2] BOORSTIN, Daniel. Os descobridores, Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1989, p.45

[3] HERRMANN, Paul. A conquista das Américas. Sâo Paulo:Boa Leitura, 1960, p.47

[4] MOURÃO, Ronaldo Rogério de Freitas. Dicionário Enciclopédico de Astronomia e Astronáutia, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 182

[5] VASCONCELLOS, Ernesto; GAMEIRO, Alfredo; MALHEIROS, Carlos. In: História da Colonização Portuguesa no Brasil, Edição Monumental Comemorativa do Centenário de Independência do Brasil, Porto, Litografia Nacional, 1912, Capítulo 2: A arte de navegar dos portugueses, p.85




O palácio mosteiro de Mafra

 

Durante o ciclo do ouro no Brasil, Portugal aplicava enormes quantidade de recursos em palácios como os de Mafra, com construção iniciada em 1716 e concluída em 1735 no reinado de D. João V e que consumiu 140 toneladas de ouro ou vinte anos de arrecadação do quinto do ouro no Brasil.[1] A construção chegou a ocupar 45 mil trabalhadores e trouxe problemas de abastecimento de material de construção para a cidade. O palácio mosteiro de Mafra era rival do Escorial e de Versailles. O suíço Charles Frederic relata a extravagância em que o plácio era considerado em Lisboa: “è certo que três quartos dos tesouros do rei e do ouro trazido, pelas frotas vindas do Brasilmfoi aqui transformado em pedras”. [2]

[1]CALDEIRA, Jorge. História da Riqueza no Brasil, Rio de Janeiro:Estação Brasil, 2017, p.143; CALDEIRA, Jorge. História do Brasil, São Paulo:Cia das Letras, 1997, p.91

[2]BOXER, Charles. O império Colonial português, Lisboa:Edições 70, 1969, p.165



Espionagem industrial no século XVIII e XIX

Um modo de se entender o quanto improvável era a Inglaterra de ter planos de instalar uma fábrica têxtil no Brasil colônia de 1809 é se observar na mesma época as dificuldades de transferência de tecnologia nesta época. Samuel Slater um jovem aprendiz de um dos parceiros de Arkwright em Derbyshire copiou os teares ingleses de Arkwright e emigrou para Rhode Island nos Estados Unidos em 1789, com apenas vinte e um anos, estabelecendo junto com Moses Brown uma fábrica em Pawtucket, Rhode Island. Ele tomou o cuidado de não levar na viagem quaisquer documentos ou desenhos ao embarcar para não ser preso, uma vez uma lei inglesa de 1781 proibia a exportação dos desenhos de máquinas [1], memorizando tudo para reproduzir em uma réplica que montou tão logo chegou aos Estados Unidos.[2] Entre 1790 e 1800 estabeleceu-se um total de doze grandes fábricas de tecidos e Slater ficou rico.  Em 1808 cerca de quinze fábricas nos Estados Unidos trabalhavam o algodão usando as máquinas de Slater. O presidente dos Estados Unidos o chamou de “o pai da revolução industrial nos Estados Unidos” ao passo que na Inglaterra ficou conhecido com “Slater, o traidor”. A esposa de Slater, Hannah (Wilkinson) Slater desenvolveu um tipo de linha de costura de algodão tendo sido a primeira mulher a receber uma patente nos Estados Unidos. Slater conseguiu estabelecer diversas fábricas e seu lucro líquido chegou a 1.2 milhões de dólares em 1835 quando faleceu. [3] Em 1812 foi a vez de Francis Cabot Lowell, formado da Universidade de Harvard, copiar os teares ingleses estabelecendo uma fábrica em Lowell em Massachusetts, conhecida como “a Manchester das Américas”. Em pouco tempo Francis Lowell fez pressão junto ao governo norte americano para garantir tarifas protecionistas que garantissem sua produção contra a concorrência dos produtos ingleses.[4]



[1] MANTOUX, Paul. A revolução industrial no seculo XVIII, São Paulo:Unesp, p.252; INKSTER, Ian. Science and technology in history, London:MacMillan, 1991, p. 50; FREEMAN, Chris; SOETE, Luc. A economia da inovação industrial, São Paulo:Ed. Unicamp, 2008, p.94

[2]FREEMAN, Chris; SOETE, Luc. A economia da inovação industrial, São Paulo:Ed. Unicamp, 2008, p.94; ZISCHKA, Anton. A Guerra secreta pelo algodão, Porto Alegre: Globo, 1936, p.50

[3]WILKOF, Neil. Samuel Slater and the American industrial revolution: trade secret misappropriation then and now trade secret misappropriation then and now, 17/07/2015 http://ipkitten.blogspot.com.br/2015/07/samuel-slater-and-american-industrial.html

[4]GALL, Norman. Brasil repete história e rouba tecnologia. Jornal do Brasil Informática, 1º caderno, p.34, 14/12/1986



Plágio em Marcial

 

Nietzsche observa que os poetas romanos traduziram as obras dos gregos sem o rigor histórico, buscando imprimir sua marca, assim Horácio traduziu Alceu e Arquilóquio; Propério traduziu Calímaco e Filetas: “De fato, traduzir era então conquistar, não somente negligenciando o histórico, mas ainda acrescentando uma alusão a um acontecimento contemporâneo, e, antes de tudo, apagando o nome do original para colocar o próprio no lugar – não se tinha, contudo, intenção de roubar; pelo contrário, agia-se com a melhor consciência do Imperium Romanum”[1] Os romanos usavam uma rede de caça chamada ‘plaga’ para caçar tanto animais selvagens quanto pessoas, de modo que a palavra ‘plagium’ significava um sequestro. O historiador romano Suetônio já explicava, no séc. I d.C., que haviam duas formas de ‘plagium’, ambas severamente punidas pelo imperador Augusto: vender pessoas livres como escravas, e roubar escravos para a vendê-los. Na Roma Antiga o poeta Marcial Valerius no século I aplicou o termo plagiarius, que era usado para o caso de roubo de escravos, ao roubo literário, da qual assim como Horácio e Virgílio alegam terem sido vítimas. O termo em francês plagiaires começa a ser usado somente no século XVII e no inglês plagiary em 1601.[2] Para Marcial um poema, de que outro autor se havia apropriado, era como uma criança que tivesse caído em mãos de um sequestrador.[3] Ao argumentar contra Fidentino, suposto plagiador de sua obra, Marcial expõe (Epigrama 30, Livro I): “segundo consta, Fidentino, tu lês os meus trabalhos ao povo como se fossem teus. Se queres que os digam meus, mandarte-ei de graça os meus poemas; se quiseres que os digam teus, compra-os, para que deixem de ser meus [...] quem busca a fama por meio de poesias alheias, quem lê como suas, deve comprar não o livro, mas o silêncio do autor”.[4]



[1]NIETZSCHE, Gaia Ciência São Paulo:La Fonte, 2017, p.94

[2]BURKE, Peter. O polímata, São Paulo: Cia das Letras, 2020, p. 123

[3]BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento, Rio de Janeiro:Zahar, 2003, p.137

[4]ROCHA, Daniel.Direito de Autor. São Paulo:Irmãos Vitale, 2001



quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

A qualidade do açúcar brasileiro no século XVIII

 

Ao final do século XVIII acumulam-se reclamações contra a má qualidade do açúcar branco brasileiro e diversas formas de fraude, como a mistura dos dois tipos de açúcar na mesma caixa e mesmo a inclusão de pedras [1]. Diante de tantas fraudes na pesagem o governo central determina em 1657 que as caixas de açúcar comecem a ser marcadas e numeradas consecutivamente de modo a certificar a qualidade do produto. Tal como as marcações do gado as marcas usadas nas caixas de açúcar usavam combinações das iniciais do nome do senhor de engenho. A Companhia Geral do Maranhão criada em 1682 impõe um regime de monopólios. Segundo João Francisco Lisboa: “os administradores não só faltaram às diversas obrigações a que se haviam sujeitado como se demasiaram em toda a casta de roubo e vexações. Os pesos e medidas que usavam eram falsificados, as fazendas e comestíveis expostos à venda, da pior qualidade e até corruptos”.[2] Em 1751 seriam criadas Casas de Inspeção.[3] John Mawe relata a marcação dos fardos de algodão feitos por oficial do governo como forma de especificar a qualidade do produto exportado.[4] Charles Boxer  no seu livro O Império Colonial Português menciona o depoimento do navegante William Dampier em visita a Salvador em 1699 em que destaca a qualidade do açúcar do Brasil: “O açúcar deste país é muito melhor do que o que transportamos para a Inglaterra vindo de nossas plantações [nas Antilhas], porque todo o açúcar aqui fabricado é refinado, o que o torna mais branco e mais fino que o nosso mascavado, nome que damos ao nosso açúcar não refinado”.[5] A figura mostra marcas de caixas de açúcar dos engenhos de Manoel de Chaves, Cristóvão de Melo, Colégio de Santo Antão de Lisboa, Padres da Companhia de Jesus da Bahia, Religiosos de Nossa Senhora do Carmo da Bahia e Gregório Soares [6]



[1]GAMA, Ruy. Engenho e tecnologia, São Paulo: Duas Cidades, 1983, p.329; GOMES, Laurentino. Escravidão, v.I, São Paulo: Globo, 2019. p.322

[2]MATOS, Clarence; NUNES, César. História do Brasil, São Paulo: Círculo do Livro, 1993, p. 27; BRITO, José Gabriel Lemos. Pontos de partida para a história econômica do Brasil. Brasiliana v. 155, São Paulo:Cia Editora Nacional, 1980, p.74

[3]SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Cia das Letras, 1988, p. 115

[4]MAWE, John. Viagens ao interior do Brasil. São Paulo: USP, 1978, p. 193

[5]BOXER, Charles. O império colonial português, Lisboa: Edições 70, 1969, p. 159, ALBUQUERQUE, Manoel Maurício. Pequena história da formação social brasileira, Rio de Janeiro: Graal, 1981, p. 71; BRITO, José Gabriel Lemos. Pontos de partida para a história econômica do Brasil. Brasiliana v. 155, São Paulo:Cia Editora Nacional, 1980, p.306

[6]SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Cia das Letras, 1988, p. 114



O uso de anagramas e o ideal de difusão da ciência no século XVII

 

Uma forma encontrada por cientistas de protegerem suas descobertas era com uso de anagramas, permitindo sua transmissão apenas para aqueles que conhecessem a forma de decodificar tais informações, mantendo a primazia da descoberta. Roger Bacon no século XIII filósofo e autor de diversos trabalhos em óptica com telescópios [1] afirmava que nenhum cientista deveria registrar suas descobertas em texto ostensiva, mas ao invés disso deveria recorrer à escrita oculta. Para composição da pólvora Bacon usou de um anagrama que uma vez decifrado revelaria as proporções de sete partes de salitre, cinco de carvão e cinco de enxofre. Seu enigma permaneceu sem solução por 650 anos até ser resolvido por um coronel do exército britânico.[2] A prática de proteger suas conclusões científicas por meio de anagramas era muito comum mesmo para alguns dos precursores da revolução científica do século XVII. Robert Hooke (1635-1703) manteve o sigilo de seus trabalhos sobre as leis de elasticidade por meio de um anagrama; CEIIINOSSSTUUV o qual decifrado significava UT TENSIO SIC VIS (conforme a tensão, tal força) [3]. Gallileu Galileu (1564-1642) usou uma cifra para comunicar a Kepler sua descoberta dos anéis de Saturno, SMAISMRMILMEPOETALEUMIBUNENUGITTAUIRAS que decifrada significava: altissimum planetam tergeminum observavi: “observei que o planeta mais distante tem forma tripla” mas que foi incorretamente decifrada como “salve companheiros gêmeos, filhos de marte” levando a concepção errônea de que Saturno possuía duas luas. [4] Quando Galileu descobriu as fases de Vênus, escreveu mais um anagrama: Haec immatura a me iam frusta legantur o y. Kepler tentou decifrá-lo, sem êxito. Isso o levou a escrever uma carta a Galileu: “Suplico-vos não nos esconder por muito tempo a solução. Deveis saber que estais tratando alemães honrados ... lembrai-vos do embaraço que me provoca o vosso silêncio”. Galileu revelou a solução desse anagrama a Giuliano de Medici, Embaixador da Toscana junto ao Sacro Império Romano, em Praga: Cynthiae figuras aemulatur mater amorum, ou seja: A mãe do amor (Vênus) emula as formas de Cíntia (Lua). Christiaan Huygens (1629-1695) também se utilizou no século na sua obra De Saturni luna observatio nova de 1656 de um anagrama para garantir a prioridade sobre sua descoberta dos anéis em Saturno: AAAAAA CCCCC D EEEEE G H IIIIIII LLLL MM NNNNNNNNN OOOO PP Q RR S TTTTT UUUUU cuja solução é Annulo cingitur, tenui, plano, nusquam cohaerente, ad eclipticam inclinato (É cercado por um anel fino e liso, em que nenhuma parte se toca, e inclinada em relação à elíptica).[5]



[1]SINGER, Charles. From magic to science. New York:Dover, 1958, p.92

[2] COUTEUR, Penny le; BURRESON, Jay. Os botões de Napoleão: as 17 moléculas que mudaram a história. Rio de Janeiro:Zahar, 2006, p.85

[3] http://en.wikipedia.org/wiki/Robert_Hooke

[4] KING, Ross. O domo de Brunelleschi: como um gênio da Renascença reinventou a arquitetura, Rio de Janeiro:Record, 2013, p.42

[5] BURKE, Peter. O polímata, São Paulo: Cia das Letras, 2020, p. 123; TATON, René. A ciência moderna: o século XVII, tomo II, v.2, São Paulo:Difusão, 1960, p.108; http://carlkop.home.xs4all.nl/huyglens.html

http://www.sil.si.edu/DigitalCollections/HST/Huygens/huygens-introduction.htm

SEDGWICK, W.; TYLER, H; BIGELOW, R. História da ciência: desde a remota antiguidade até o alvorescer do século XX, Rio de Janeiro:Ed. Globo, 1952, p.278


Cruzeiro do Sul descoberto pelos portugueses

 

Com conhecimentos em astronomia, o piloto judeu espanhol João Faras conhecido como Mestre João da frota de Pedro Álvares Cabral calculou as coordenadas do Cruzeiro do Sul (que no texto é designado como Crux) e, segundo o astrônomo do século XIX Amedee Guillemin, o Mestre João teria observado o cometa Astone conhecido na Itália como “il Signor Astone” “A Grande Haste” em 12 de maio de 1500 logo depois da descoberta do Brasil. Existe menção do mesmo cometa na Europa e China.[1] Em um dos trechos da carta de Mestre João, descoberta em 1843 pelo historiador Francisco Adolfo de Varnhagen e escrita na atual Baía Cabrália, onde o astrônomo realizou os primeiros estudos astronômicos no Brasil, ele descreve a constelação do Cruzeiro do Sul conhecida desde a Grécia Antiga, e sugere ao rei que peça um mapa onde veria a localização das terras onde eles estavam, o que faria crer que os portugueses já conheciam o território brasileiro. Já denominado como Cruzeiro do Sul a constelação é descrita no Tratado da Agulha de marear de João de Lisboa de 1514 que se encontra no Livro da Marinharia.[2] Em 1455 o navegador veneziano em Alvise Cadamosto registrou o que chamou de carro dell’ostro (“carruagem do sul”) possivelmente se referindo ao Cruzeiro do Sul ainda que sua descrição seja imprecisa. A descrição do Mestre João em 1500 é considerada a primeira representação correta feita por um europeu. O Cruzeiro do Sul está catalogado no Almagesto de Ptolomeu na constelação de Centauro, porém foi ignorado por séculos. A notificação de mestre João difundiu-se especialmente após o médico e astrônomo Jean Bayer a ter incluído na célebre obra Uranometrie publicada em 1604.[3] O piloto português João de Lisboa fez observações repetidas do Cruzeiro do Sul em sua viagem a Índia com Pero Anes. O florentino Andrea Corsali em carta de Cochim na Índia ao duque Julião de Médicis se 1515 se refere à “croce maravigliosa”. Americo Vespucio em carta de 18 de julho de 1500 se refere ao movimento lento de quatro estrelas, que, portanto, não corresponde ao Cruzeiro do Sul. A origem portuguesa do Cruzeiro do Sul é cantada em versos de Camões: “Já descoberto tínhamos diante. Lá no novo hemisfério, nova estrela. Não vista de outra gente, que ignorante. Alguns tempos esteve incerta dela”. Pedro Nunes no Tratado em defensam da carta de marear descreve que “os portugueses ousaram cometer o grande mar Oceano. Entraram por ele sem nenhum receio. Descobriram novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos e, o que mais é: novo ceu, novas estrelas”.

[1]MOURÃO, Ronaldo Freitas. Dicionário Enciclopédico de astronomia e astronáutica, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987, p. 133

[2]VASCONCELLOS, Ernesto; GAMEIRO, Alfredo; MALHEIROS, Carlos. In: História da Colonização Portuguesa no Brasil, Edição Monumental Comemorativa do Centenário de Independência do Brasil, Porto, Litografia Nacional, 1921, Capítulo 2: A arte de navegar dos portugueses, p. 68

[3]MOURÃO, Ronaldo Freitas. Dicionário Enciclopédico de astronomia e astronáutica, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987, p. 213




quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Plágio contra Tycho Brahe

 

Tycho Brahe (na figura ) queixou-se de plágio de suas medições o que teria ocorrido na obra Fundamentum Astronomicum do astrônomo dinamarquês Reimarus / Reimarius Ursus publicada em 1588 após visita ao observatório de Tycho Brahe realizada em 1584.[1] Reimarius trabalhava com o noivo da irmã de Tycho Brahe e tornou-se o matemático imperial de Rodolfo II. Tycho Brahe referia-se a Reimarus como “Ditmarsken Bear” ou “Plagiário” e o acusou de ter feito secretamente vários desenhos dos instrumentos que pode observar em Hveen e depois de sua partida tentou convencer seus senhores de que seria ele o inventor de tais instrumentos. John Gade, contudo, considera a acusação de Tycho Brahe injusta. Em 1593, Reimarus respondeu às acusações em um jornal de astronomia onde se queixa das "palavras ousadas para um homem sem nariz" em referência a falta de nariz que Tycho Brahe perdeu em um duelo quando jovem e mencionou que Johannes Kepler, já um astrônomo famoso, ficou do seu lado na disputa.[2] No modelo de Tycho Brahe a terra permanece imóvel e as órbitas de Marte e do Sol se interseccionam o que leva a conclusão que nção se trata de corpos celestes sólidos. No modelo de Reimarus a Terra tem um movimento de rotação e as órbitas de Marte e do Sol não se interseccionam de modo que evita a conclusão de tycho Brahe quanto ao fato de Marte o Sol serem corpos celestes sólidos. Quando em 1600 Tycho Brahe finalmente ameaçou Reimarus de processo, então professor de matemática em Praga, Reimarus foi acometido por tuberculose e veio a falecer.[3] Tycho Brahe e Joannes Kepler por sua vez, também acusaram John Dee de roubar suas informações.[4]



[1] MOURÃO, Rogério. Dicionário de astronomia e aeronáutica, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p.678

[2]https://io9.gizmodo.com/savor-this-historic-battle-between-three-famous-scient-1668103032

[3] GADE, John Allyne. The life and times of Tycho Brahe, New York: Princeton University Press, 1947, p. 140

[4] BURKE, Peter. O polímata, São Paulo: Cia das Letras, 2020, p. 122



Junta de matemáticos de D. João II ?

 

Barros mostra que quando Colombo apresentou seus planos ao rei de Portugal d. João II em 1483 neste o encaminhou ao bispo Diogo Ortiz e aos mestres Rodrigo e José “a quem ele cometia essas coisas de cosmografia e seus descobrimentos”. Pero da Covilha contou ao padre Francisco Alvares que em sua viagem de 1487 lhe apresentaram uma carta de marear elaborada na casa de Pero de Alcaçova, Diogo Ortiz de Villeva nascido em Castela e graduado pela Universidade de Salamanca, o mestre Rodrigo das Pedras Negras e Mestre Moysés (o seu nome judeu) também conhecido como José Vizinho cristão-novo natural da Covilhã, formado em Medicina em Salamanca. Admite-se que José Vizinho tenha inspirado os mais antigos regimentos náuticos portugueses conhecidos: o regimento de Munique e o regimento de Évora. A partir destas referências Stockler em 1819 conclui que havia uma Junta de Matemáticos entendida não como uma reunião ocasional de especialistas em cosmografia e navegação, mas uma verdadeira Academia a auxiliar a Coroa portuguesa nesses assuntos. Entre estes especialistas havia também o cosmógrafo alemão Martin Behaim (Martinho da Boémia) construtor do famoso globo de Nuremberg que mostrava o Atlântico entre a Espanha e a China sem a representação da América e que foi completado em 1492 após as viagens de Colombo. Martin Behain era discípulo de Regiomontanus, e era presumível agente do Imperador Maximiliano I, primo e amigo de João II, que terá acompanhado a viagem de Diogo Cão (1485-86). Outro célebre cosmógrafo do grupo era o judeu espanhol Abrãao Zacuto / Zagut, professor da Universidade de Salamanca, autor do Almanach perpetuum celestium motuum impresso em Veneza em 1472, traduzido para o português por José Vizinho (na figura a versão publicada em Leiria 1496) e usado por Colombo e Fernando de Magalhães em suas viagens.[1] Abrãao Zacuto se refugiou em Portugal após a expulsão dos judeus de Castela, em 1492. No entanto os principais cronistas da época como o próprio Barros, Castanheda ou Rui de Pina em nenhum meomento faz referência a existência de uma Junta de Matemáticos. Martinez de la Puente no seu Compendio de las histprias de la India Oriental de 1681 também faz referência a esta suposta Junta de Matemáticos reunida pelo rei português. Luciano Pereira da Silva conclui que tal Junta nunca existiu [2], o que havia era um grupo seleto e restrito de especialistas com quem o rei contava para assuntos relacionados a cosmografia, cartografia e navegação, dentro os quais se destacam Duarte Pacheco Pereira que ele encaminhou para viagem na Guiné e depois à conferência de Tordesilhas em 1494 e que seria o autor do Esmeraldo de situ orbis.[3]



[1]MOURÃO, Rogério. Dicionário de astronomia e aeronáutica, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p.877

[2]VASCONCELLOS, Ernesto; GAMEIRO, Alfredo; MALHEIROS, Carlos. In: História da Colonização Portuguesa no Brasil, Edição Monumental Comemorativa do Centenário de Independência do Brasil, Porto, Litografia Nacional, 1921, capítulo 2. A arte de navegar dos portugueses, p. 66

[3]https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/242845



terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Sacrobosco e os navegadores portugueses

 

A obra de Sacrobosco Tractatus de Sphaera Mundi foi publicada em Ferrara em 1472 e teve mais de 70 edições tornando-se um livro texto de grande difusão até o século XVII: [1] “que a terra também é redonda aparece assim. Os signos e as estrelas não surgem e se põem igualmente para todos os homens que estão em todos os lugares, mas primeiramente surgem e se põem para aqueles que estão para o oriente e surgem e se põem mais tarde para os outros [...] Além disso se a terra fosse plana do oriente para o ocidente, as estrelas surgiriam tão cedo para os orientais quanto para os ocidentais, o que é falso”.  Para Sacrobosco tanto na região equinociais próxima ao equador (“zona tórrida” devido a quentura do sol) como dos pólos por serem regiões muito frias, a terra esférica seria desabitada. O Regimento de Munich e o Tratado da Spera do Regimento de Évora de 1517 reproduziam os mesmos conceitos de Sacrobosco. Pedro Nunes na sua tradução da obra de Sacrobosco em 1537 comenta: “As navegações dos portugueses nos mostraram que não há terra tão destemperada, por quente nem por fria, em que não haja homens”. Duarte Pacheco em seu Esmeraldo de 1506 comenta este argumento da inabitabilidade dos pólos e das regiões equatoriais: “tudo isso é falso, certamente temos muita e muita razão de nos espantar de tão excelentes homens, como esses fora, e assim Plínio e outros autores, que isto mesmo afirmaram, caíram em tamanho erro como neste caso disseram, porque eles mesmo confessam a Índia ser verdadeiramente oriental  e povoada de gente sem número, e que como é com o oriente, também seja com o círculo equinocial, que passa pela guiné e pela Índia e com a maior parte dela tenha vizinhança, claramente ser falso o que escreveram, pois debaixo da mesma equinocial há tanta habitação de gente quanto temos sabida e praticada, e como quer que a experiência  é mãe das coisas, por ela soubemos radicalmente a verdade”. [2]



[1] MOURÃO, Ronaldo Freitas. Dicionário Enciclopédico de astronomia e astronáutica, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987, p. 698

[2] VASCONCELLOS, Ernesto; GAMEIRO, Alfredo; MALHEIROS, Carlos. In: História da Colonização Portuguesa no Brasil, Edição Monumental Comemorativa do Centenário de Independência do Brasil, Porto, Litografia Nacional, 1921, capítulo 2 A arte de navegar dos portugueses, p. 63



Feudalismo em Portugal ?

 

Roberto Simonsen em História Econômica do Brasil publicado em 1937 criticou a tese de que o regime de capitanias hereditárias no Brasil pudesse ser entendido como um regime feudal, uma vez que este processo somente pode ser entendido como um elemento da expansão do sistema capitalista europeu [1]: “sob o ponto de vista econômico, que não deixa de ser básico em qualquer empreendimento colonial, não me parece razoável a assemelhação desse sistema ao feudalismo” enquanto que no sistema feudal não se busca o lucro, no sistema de donatarias a busca por fortuna pelos donatário é evidente, mesmo Portugal já não vivia sob regime feudal, seu objetivo na conquista de novas terras é enriquecer e fortalecer o Estado português. A Espanha foi conquistada pelos muçulmanos um século antes de Carlos Magno formar o feudalismo europeu, o que levou a inserção tardia de Portugal e Espanha ao movimento europeu. Em Portugal a reconquista do sul do Algarve em 1249 foi muito mais rápida do que o caso espanhol e levou a um reforço do poder real como os casa de Bragança  [2]. Lemos Brito destaca que se no feudalismo a exploração do colono agrícola em regime de servidão era severa, em Portugal isso seria ainda mais rigoroso por conta do domínio árabe e com isso levou a uma inércia e hostilidade do português à agricultura em tal período medieval. Fortunato de Almeida em História de Portugal escreve “a população portuguesa não era diligente nos trabalhos agrícolas”. Nicolau Clenardo destaca: “Se a agricultura alguma vez foi desprezada é de certo nos lugares que habito [Portugal]. O que em outra parte se reputa o nervo principal das nações, aqui olha-se como insignificante ou inútil”.[3] Para João Tierno: “No período inicial de nossa existência como nação, vimo-nos forçados a uma luta de mais de dois séculos para mantermos uma autonomia artificial, dificilmente explicável, e mal podíamos olhar para os interesses da agricultura. Consolidada a independência, apertados como estávamos entre o mar e um país forte e despeitado, estendidos ao comprido sobre uma estreita faixa de território quase todo árido e improdutivo, fomos fatalmente impelidos para esse oceano lendário e misterioso”. Este pouco interesse na agricultura foi transplanto ao Brasil pelo colono português. Robert Southey aponta que no Brasil holandês do século XVII “três classes de homens, se dizia, faziam falta no Brasil: capitalistas, que especulassem em engenhos de açúcar; artesãos e operários que depois de terem juntado algum pecúlio se entregassem à agricultura, fixando-se no solo adotivo como no natal o teriam feito” [4].

[1]Os portugueses na América: feitorias e capitanias hereditárias (Aula 3, parte 3) https://www.youtube.com/watch?v=OwWTHuerec8

[2]ANDERSON, Perry. Passagens da antiguidade ao feudalismo, Porto: Afrontamento, 1982, p. 191

[3]BRITO, José Gabriel Lemos. Pontos de partida para a história econômica, Brasisilana v.155, São Paulo: Cia Editora Nacional, 1980, p.5

[4]SOUTHEY, Robert. História do Brasil, Brasília: Melhoramentos, 1977, v.1, p. 412



Doação de Constantino

  Marc Bloch observa a ocorrência de falsificações piedosas tais como a pseudo doação de Constantino ( Constitutum Donatio Constantini ) ao ...