sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Doação de Constantino

 

Marc Bloch observa a ocorrência de falsificações piedosas tais como a pseudo doação de Constantino (Constitutum Donatio Constantini) ao papa Silvestre I em 315, uma falsificação que data do século VIII e em que foi confirmada a fraude somente em 1440 por Lorenzo Valla[1] em seu Tratado sobre a Doação de Constantino. O tratado de gramática e estilística de Lorenzo Valla, Aelegantiae linguae latinae tornar-se referência entre os eruditos por seu rigor metodológico[2]. O autor da Doação de Constantino cometeu erros crassos como usar o termo “diadema” com o significado de coroa de ouro quando na época o termo significava um pano grosseiro, e que o termo “tiara” não era usado na época, entre várias outras contradições que mostravam de forma incontestável que não poderia ter sido escrito antes do século VIII e jamais se tratar de um texto do século IV. Esta análise crítica textual desenvolveu-se no Renascimento no qual os textos antigos são lidos, antes de tudo, como documentos históricos, retirando o caráter sagrado imposto pela Igreja.[3] Dizia-se que Constantino fora motivado pelo agradecimento a Silvestre I por tê-lo curado da lepra e o convertido ao cristianismo.[4] Quando em 756 Pepino o Breve fez um acordo franco papal que doava terrenos à igreja confirmado por Carlos Magno[5] ele estaria meramente restituindo à Igreja o que Constantino havia dado[6], dando origem ao Estado Pontifício[7]. Em troca Pepino recebeu o título de patricius romanus e o compromisso dos francos de que nunca escolheriam um rei que não fosse de suas descendência[8]. Nicolau de Cusa na mesma época já apontava o fato de que o bispo Eusébio de Cesareia biógrafo de Constantino não menciona tal doação do imperador. De fato Constantino doara ao bispo de Roma o palácio de Latrão e o ducado de Roma, mas não há qualquer prova de doação de toda a Itália e as províncias ocidentais.[9] Para Silvester Prierias (1456-1523) a doação de Constantivo não foi propriamente uma doação mas uma restituição “non est donatio sed restitutio”.[10] Os compiladores do Liber Pontificalis indicam listas de propriedades dos bispos romanos de 314 a 440 d.c com doações à Igreja entre as quais incluem doações de Constantino, do senador galicano, de uma mulher da alta sociedade Vestin e vários bispos de Roma[11]. A doação de Pepino aconteceu depois do papa Estevão II de Roma ter seu apelo de apoio de Constantinopla negado por Constantino V, o que o fez a buscar aliança com os lombardos. A ideia essencial do documento era a de excluir os bizantinos de qualquer poder sobre a península itálica[12].



[1] CORNELL, Tim; MATHEWS, John. Renascimento v.II, Grandes Impérios e Civilizações, Lisboa:Ed. Del Prado, 1997, p. 117

[2] CROUZET, Maurice. História Geral das Civilizações: a idade média, os tempos difíceis, volume 8, São Paulo: Bertrand Brasil, 1994, p. 177

[3] DUNN, James. Jesus recordado, São Paulo: Paulus, 2022, p. 46

[4] BOORSTIN, Daniel. Os descobridores, Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1989, p.520; BOORSTIN, Daniel. Os investigadores. Rio de Janeiro: Civillização Brasileira, 2003, p.108

[5] JUNIOR, Hilário Franco. A idade média nascimento do Ocidente. São Paulo:Brasiliense, 1986, p. 90

[6] JUNIOR, Hilário Franco. A idade média nascimento do Ocidente. São Paulo:Brasiliense, 1986, p. 96

[7] JÚNIOR, Hilário Franco. A idade média nascimento do Ocidente, São Paulo:Brasiliense, 2004, p.57

[8] DURANT, Will. História da Civilização, A idade da fé, tomo II, São Paulo:Cia Editora Nacional, 1957, p.249

[9] FLORI, Jean. Jerusalém e as cruzadas. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude. Dicionário analítico do Ocidente medieval. v.II, São Paulo:Unesp, 2017, p. 24

[10] HOFFNER, Joseph. Colonialismo e evangelho, São Paulo: Presença 1973, p.42

[11] CORNELL, Tim; MATTHEWS, John. Roma: legado de um império, v. II, Lisboa:Edições del Prado, 1996, p. 200

[12] BALARD, Michel. Bizâncio visto do Ocidente. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude. Dicionário analítico do Ocidente medieval. v.I, São Paulo:Unesp, 2017, p. 150



segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Pontifex Maximus

 

Os sacerdotes construtores da ponte Sublícia (Sublicius pons) sobre o rio Tibre gozam de respeito mágico religioso, ao qual se atribui o nome de pontífices do latim: pontifex, construtor de pontes") membro do principal colégio (colégio) de sacerdotes[1]. Spencer mostra que no passado a arquitetura constituía uma manifestação do culto votado aos antepassados seja na construção de templos ou túmulos cujo projeto era reservado a sacerdotes que assim se tornaram os primeiros arquitetos[2]. Cerimônias fúnebres domésticas muito antigas eram realizadas nas pontes construídas em madeira, entre elas o sacrifício dos argeus (bonecos de palha atirados no Tibre, representando antigos sacrifícios humanos) durante o festival, realizado em maio conhecido como Lemúria (lêmures  - espíritos errantes dos ancestrais mortos) celebrada pelo pater famílias e descrita por Ovídio em Fastos[3]. Em Roma o Colégio de Pontífices (Collegium Pontificum) tinha como líder o pontífice máximo (pontifex maximus)[4] – construtor de pontes[5] e ao qual era atribuído o poder efetivo sobre os assuntos religiosos.[6] Próximo ao Fórum Romano ficava a Régia que servia como santuário sagrado e residência oficial do pontifex maximus ou sumo sacerdote de Roma.[7] No Fórum se encontrava a figueira sagrada de Rômulo adorada até os últimos dias do Império.[8] O Pontifex Maximus era o único depositário da interpretação do direito, antes da instituição dos decênviros em 452 a.c. e também era o responsável para supervisão do calendário[9] - calendas, além de supervisionar os sacrifícios , observar o culto e os registros oficiais do culto estatal  bem como designar as Virgens Vestais.[10] Em 304 a.c os plebeus conseguiram quebrar o monopólio até então exercido pelo Colégio dos Pontífices em matéria de interpretação das leis. Os pontífices tinham como uma de suas prerrogativas a organização do calendário com a fixação dos dias em que era permitido tratar as causas em juízo (dies fasti) e os dias em que isso era proibido (dies nefasti).[11] Cabia o pontifex maximus a nomeação dos flamines, os sacerdotes públicos do povo romano e o rex sacrotorum. [12] Quando Augusto em 12.a.c assume o título de pontifex maximus ele pacientemente teria esperado a morte de seu rival Lépido como mostra do respeito que tinha por esse título.[13] O primeiro imperador romano a abandonar o título será o católico Graciano (governou 367-383).


A dificuldade em se estabelecer um calendário é um reflexo da inércia científica romana, a instituição de meses suplementares dependia do colégio de pontífices e era governada por interesses políticos e escrúpulos religiosos o que levava a graves desordens. Os colégios de augures e pontífices eram formados os seis pontífices conhecedores das coisas humanas e divinas que detinham os segredos das medidas e dos numerais e que deviam anunciar o calendário de dias festivos, de lua nova (novilúnio) e lua cheia (plenilúnio).[14] Em 45 a.c. com a ajuda de sábios alexandrinos do Egito entre os quais Sosígenes, o imperador Júlio César impôs uma reforma no calendário que fixava a duração do ano em 365 dias e um quarto. Pelo calendário anterior o ano tinha apenas 355 dias o que faiz com que as festas da colheita caíssem em época em que os cultivos ainda estavam crescendo.[15] Na Reforma de Julio Cesar e a introdução do calendário juliano foi estabelecido que o primeiro dia do ano não seria o primeiro dia do solstício de inverno, ou seja, em 25 de dezembro mas na primeira lua nova após esta data que naquele ano ocorreu oito dias após ou 1 de janeiro.[16] Este ano extraordinário compreendeu um período de 445 dias de 13 de outubro de 47 a.c. a 3 de dezembro de 46 a.c. Este ficou conhecido como “ano da confusão”.[17]


Com a morte de César em 44 a.c. e sem poder controlar a fixação do primeiro ano bissexto (sendo 24 de fevereiro o sexto dia antes das calendas de março, o dia 25 adicional a ser inserido no calendário a cada quatro anos passou a ser conhecido como “sexto repetido”). Os pontífices acabaram interpretando de forma errada o texto do decreto a criaram o primeiro ano bissexto a um intervalo a cada três anos ao invés de quatro anos, sendo necessários mais cinquenta e dois anos para corrigir o erro. [18]



[1] BEARD, Mary. SPQR: uma história da Roma Antiga, São Paulo: Planeta, 2010, p. 101

[2] FILHO, Adolfo Morales de los Rios. Teoria e filosofia da arquitetura, Rio de Janeiro: A Noite, 1955, p. 99

[3] BUSTAMANTE, Regina. Lemuria: apaziguando os mortos malfazejos na Roma Antiga. PHOÎNIX, Rio de Janeiro, 20-2: 109-128, 2014  https://digitalis-dsp.uc.pt/bitstream/10316.2/35015/1/Phoinix_20.2_artigo8.pdf?ln=pt-pt  https://pt.wikipedia.org/wiki/Ponte_Subl%C3%ADcio

[4] BONILLA, Luis. Breve historia de la técnica y del trabajo, Madrid:Ed. Istmo,1975, p.113; MATTOSO, Antonio. História da civilização, Lisboa:Ed Sá da Costa, 1952, p.382

[5] CAMP, L. Sprague de. The ancient engineers, New York: Ballantine Books, 1963, p. 204

[6] BLOCH, Raymond; COUSIN, Jean. Roma e o seu destino. Rio de Janeiro:Cosmos, 1964, p.69

[7] Time Life. Roma: ecos da glória imperial, Rio de Janeiro:Abril, 1998, p. 24

[8] FRAZER, James. O ramo de ouro, São Paulo: Círculo do Livro, 1978, p. 58

[9] DEARY, Terry. Terríveis romanos. São Paulo:Melhoramentos, 2002, p. 102

[10] BOORSTIN, Daniel. Os investigadores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p.102

[11] GIORDANI, Mario Curtis. História de Roma, Rio de Janeiro:Vozes, 1981, p. 260

[12] GIORDANI, Mario Curtis. História de Roma, Rio de Janeiro:Vozes, 1981, p. 299

[13] AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. Roma  e seu Império, tomo II, V. 2, São Paulo: Difusão, 1963, p. 41; KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo testamento, V.I, São Paulo: Paulus, 2005, p. 43; KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo testamento, V.I, São Paulo: Paulus, 2005, p. 310

[14] ONCKEN, Guilhermo. História Universal – História de Grécia e Roma, Francisco Alves:Rio de Janeiro, v.IV, p.621

[15] BEARD, Mary. SPQR: uma história da Roma Antiga, São Paulo: Planeta, 2010, p. 287

[16] MOURÃO, Rogério Freitas. Dicionário enciclopédico de astronomia e astronáutica, Rio de Janeiro,Nova Fronteira, 1987, p. 417

[17] MOURÃO, Rogério. Dicionário de astronomia e aeronáutica, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p.40

[18] AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine, Roma e seu império, História Geral das Civilizações, São Paulo:1974, p. 236

sábado, 10 de dezembro de 2022

Oráculos Sibilinos

 

A vontade dos deuses era conhecida pelos augures romanos consultando-se as vozes da natureza, de modo que qualquer perturbação desta ordem era considerada um sinal nefasto de tal modo que as assembleias municipais deviam suspender suas sessões tão logo relampejasse ou trovejasse.[1] Um espelho de bronze de Vulceios datado de 400 a.c. mostra um haruspice etrusco que examina o fígado de uma vítima,[2] uma atividade correlacionada com a análise de fenômenos naturais como trovoadas.[3] Os sacerdotes árbitros destas questões eram eleitos pelo colégio de intérpretes dos livros sibilinos, escolhidos entre os representantes plebeus.[4] Os livros sibilinos composto de várias profecias foi oferecido pelas sacerdotisas chamadas Sibila a Tarquínio, soberano de Roma, tendo sido os livros conservados no templo de Júpiter em Roma para consulta em tempos de crise.[5] Os Oráculos Sibilinos entre os quais a coleção mais famosa são três livros de oráculos da Sibila de Cumas conservados em Roma guardados pelo Senado numa cripta no templo de Júpiter Capitolino. Com o incêndio do templo em 83 a.c. uma versão do que sobrou foi entregue por Augusto ao Templod e Apolo sobre o Palatino em 12 a.c. Os livros eram consultados em ocasiões importantes envolvendo questões de interesse de Estado, o que mostra a reputação de tais livros na época e os cuidados para evitar a falsificação[6]. O senado romano segundo relato do poeta Luciano em seu poema A Guerra Civil consultou o grande arúspice etrusco Arunte para uma consulta. O senador Fabio Pictor registra que fizera parte de uma delegação enviada pelo Senado ao oráculo de Delfos após a vitória de Aníbal em Canas em 216 a.c. Diversos senadores ocupavam cargos sacerdotais exercendo cargos vitalícios e muitas vezes sendo homenageados em cerimônias muitos anos após sua morte. O Senado era o mediador final entre os romanos e os deuses. Diversos políticos eminentes em Roma eram iniciados nos mistérios de Deméter e Eleusis tais como Sila, Cícero, Antonino Pio, Marco Antonio, Cômodo e Augusto. O ponto alto da cerimônia do santuário de Demeter em Eleusis era o momento que o hierofante consagrava a espiga de trigo. Na Grécia, Deméter era cultuada como a Mãe do Grão e não como a Mãe da Terra como normalmente se supõe[7] Em 249 o imperador Décio ordenou um sacrifício coletivo aos deuses como solução à crise militar vivenciada naquele período.[8]



[1] ONCKEN, Guilhermo. História Universal – História de Grécia e Roma, Francisco Alves:Rio de Janeiro, v.IV, p.600

[2] BLOCH, Raymond. Os etruscos. Lisboa: Editorial Verbo, 1970, p.254

[3] BLOCH, Raymond. Os etruscos. Lisboa: Editorial Verbo, 1970, p.143; ROSS, Norman. The epic of man, Life Magazine, 1962, p. 170

[4] BLOCH, Leon. Lutas sociais na Roma Antiga, Lisboa:Pub. Europa America, 1956, p.81

[5] READER’S DIGEST, Os últimos mistérios do mundo, Rio de Janeiro, 2003, p. 225

[6] KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo testamento, V.I, São Paulo: Paulus, 2005, p. 267

[7] KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo testamento, V.I, São Paulo: Paulus, 2005, p. 183

[8] WOOLF, Greg. Roma: a história de um império,São Paulo: Cultrix, 2017, p.161, 166



quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Paulo e o helenismo

 

Marilena Chauí mostra que os padres da Igreja como Eusébio de Cesareia e judeus como Filo de Alexandria defendiam que a filosofia grega tinha como origem o pensamento do Oriente (egípcios, assírios, persas, caldeus, babilônios), procurando mostrar que o cristianismo e o judaísmo tinham as mesmas origens, no entanto segundo Marile Chauí embora haja provas desse vínculo “de fato os gregos imprimiram mudanças de qualidade tão profundas no que receberam do Oriente e das culturas precedentes, que atá pareceria terem criado sua própria cultura a partir de si mesmos”. Entre estas inovações a autora destaca que os gregos humanizaram os mitos destas culturas; transformaram uma boa parte desse conhecimento em racional e inventaram a política ao separar o poder político das outras formas tradicionais de autoridade como o chefe de família ou o mago.[1] Segundo Helmut Koester: “o cristianismo, que começou nos momentos iniciais do período imperail romano, entrou no mundo romano como uma religião helenística, especificamente como herdeira de uma religião judaica já helenizada”.[2] Esta influência do mundo greco romano está presente desde o início do cristianismo primitivo nas cartas de Paulo pois em sua época todos os judaísmos já estavam bastante helenizados de modo que não há como separar Paulo deste contexto. Wayne Meeks porém adverte que seria um erro enquadrar Paulo às correntes existentes de judaísmo rabínico[3]. Paulo citou diretamente trecho da comédia de Menandro ou Eurípedes como consta 1 Coríntios 15:33 (as pinturas encontradas nas paredes de algumas casas em èfeos mostram que essas comédias ainda eram bastante populares)[4] e o filósofo Epimenides e  o poeta Arato em Atos 17:28. Ronald Hock mostra que ainda que Paulo em 1 Coríntios 15:33 esteja citando um provérbio popular estes eram comumente usados pelos alunos quando aprendiam a ler o que pode revelar um traço da educação de Paulo. Ademais as dezenas citações da Septuaginta revelam que Paulo era uma pessoa com educação formal.[5] Ele da mesma forma citou Epimênides no livro de Tito 1:12 ainda que esta última não seja considerada uma carta de autoria de Paulo revela o hábito dos provérbios aprendidos na escola[6]. Segundo Paul Sampley: “não existe uma versão do evangelho sem suposições e convenções culturalmente situadas”.[7] Ao tratar do sofrimento humano Paulo aborda o tema usando ideias comuns da retórica grega em que invoca o sofrimento compartilhado dos amigos como presente nas obras de filósofos como Cícero, Diégenes Laércio, Plutarco entre outros.[8] Paulo usa frequentemnete um estilo estoico cínico da diatribe, uma homilia moral que faz uma afirmação moral direta para depois ilustrá-la com parábolas e narrativas. Este estilo polêmico escarnecia da linguagem técnica, usada por exemplo nos diálogos de Platão e utilizava como exemplos a língua vernácula e metáforas usadas por pessoas comuns, sem nenhum receio de ser rude.[9] Este recurso é sobretudo usado em suas cartas aos Coríntios e aos Romanos. [10] Há indícios no Novo Testamento de que Paulo foi julgado por suas habilidades retóricas como expõe em 2 Coríntios 10: 13.[11] Embora Paulo se mostre pouco à vontade com o uso consciente da arte retórica (1Cor 2: 1-5) são inúmeros os exemplos em que ele traça comparações para reforçar seu argumento, uma conhecida técnica de retórica dos gregos. Em Gálatas 4:25 diz que Agar / Monte Sinais está em paralelo (systoichei) com a Jerusalém de agora, usando um termo presente na retórica de Aristóteles. [12] Ademais esta influência greco romana é evidente pelo fato de que todo o Novo Testamento foi escrito em grego tendo em vista a evangelização dos gentios. Quando Paulo  após quase ter sido linchado  diante do templo é resgatado por um tribuno romano e perguntado se falava grego ele responde com um verso que ecoa o poeta Eurípedes: “Eu sou judeu de Tarso, da Cilícia, cidadão de uma cidade insigne” Atos 21:39. No texto pagão em um incidente semelhante numa briga diante do templo Clitofon declara: “Cavalheiros, que coisas sofri, eu, homem livre e de uma cidade insigne”.[13] Helmut Koester mostra como Paulo foi teve edução baseada na tradição da diatribe estoico cínica[14] e utilizou-se tanto da retórica apologética (forense) como a deliberativa ao escrever aos Gálatas em defesa de seu apostolado.[15] Lucas no livro de Atos dos Apóstolos 17:22 apresenta o discurso de Paulo junto ao Aerópago alinhado com a tradição da religião e da filosofias gregas. [16]

[1] CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia, São Paulo: Ática, 2004, p. 34

[2] KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo testamento, V.I, São Paulo: Paulus, 2005, p. 44

[3] MEEKS, Wayne. Os primeiros cristãos urbanos, Rio de Janeiro: Paulus,2022, p. 81

[4] KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo testamento, V.I, São Paulo: Paulus, 2005, p. 134

[5] HOCK, Ronald. Paulo e a educação greco romana. In: SAMPLEY, Paul. Paulo no mundo greco romano, São Paulo: Paulus, 2008, p.185

[6] SAMPLEY, Paul. Paulo no mundo greco romano, São Paulo: Paulus, 2008, p.xv

[7] SAMPLEY, Paul. Paulo no mundo greco romano, São Paulo: Paulus, 2008, p.xviii

[8] FREDRICKSON, David. Paulo, as tribulações e o sofrimento. In: SAMPLEY, Paul. Paulo no mundo greco romano, São Paulo: Paulus, 2008, p. 154

[9] KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo testamento, V.I, São Paulo: Paulus, 2005, p. 159

[10] STAMBAUGH, John; BALCH, David. O Novo testamento em seu ambiente social,  São Paulo: Paulus, 2008, p. 132

[11] STAMBAUGH, John; BALCH, David. O Novo testamento em seu ambiente social,  São Paulo: Paulus, 2008, p. 112

[12] FORBES, Christopher. Paulo e a comparação retórica. SAMPLEY, Paul. Paulo no mundo greco romano, São Paulo: Paulus, 2008, p.143

[13] HOCK, Ronald. Paulo e a educação greco romana. In: SAMPLEY, Paul. Paulo no mundo greco romano, São Paulo: Paulus, 2008, p.196

[14] KOESTER, Helmut. Introdução ao novo testamento, v.II, São Paulo: Paulus, 2005, p.114

[15] KOESTER, Helmut. Introdução ao novo testamento, v.II, São Paulo: Paulus, 2005, p.78

[16] KOESTER, Helmut. Introdução ao novo testamento, v.II, São Paulo: Paulus, 2005, p.344



segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Fílon de Alexandria

 

A biblioteca de Alexandria marca o florescimento cultural da civilização helenística caracterizada por um cosmopolitaniismo no pensamento e nas artes, assim como o desenvolvimento de um idioma grego comum o koine (forma feminina do adjetivo que significa “comum”).[1] Em Alexandria onde havia uma florescente comunidade judaica foi preparada por setenta rabinos a Septuaginta o nome da versão da Bíblia hebraica traduzida em etapas para o grego koiné, entre o século III a.C. e o século I a.C.[2] Esta mescla do pensamento grego com o hebreu pode ser observada na Palestina do século III a.c. com o livro de Eclesiastes. Fílon de Alexandria (30 a.c. – 50 d.c.), considerado o “Platão hebreu”, é um exemplo de judeu alexandrino que integra elementos das duas culturas com forte influência do estoicismo e platonismo.[3] Para Fílon a alma rem sua origem no mundo de Deus, de modo que somente o espírito humano reconhece Deus e o logos, o que é possível quando nos libertamos do mundo visível pela prática da sabedoria e exercício da virtude. Para Fílon a ciência humana é um empreendimento destinado a uma procura contínua, sem fim: “Assim como alguns cavadores de poços, muitas vezes, não encontram a água procurada, assim também aqueles que avançam na ciência e insistem cada vez mais não conseguem alcançar-lhe o fim. Os doutos acusam a própria ignorância, reconhecendo unicamente  quando se acham longe da verdade. Afastando-se da verdade, a dificuldade de propcurá-las e acha-la gera as disputas.  Nas infinitas coisas de que tratam a lógica, a ética e a física nascem inumeráveis discussões. Que nos resta então senão a necessidade de se suspender o juízo ?”.[4] Para Fílon, o conhecimento humano é incapaz de encontrar a verdade.[5] Para Carlos Gouné, Fílon é uma “encruzilhada de caminhos” como judeu da diáspora que experimenta influências diversas e que analisa as crenças pagãs dentro do contexto da religião judaica sendo precursor da teologia e de um método alegorista na análise das escrituras, por metáforas, fora do sentido literal[6]. A interpretação alegórica de Fílon, sofreu a influência do estoicismo que buscava significados ocultos nas obras de autores clássicos como Homero, tal como se pode observar nos textos do estoico Cornuto no século I d.c. e Posidônio de Apameia.[7]

[1] DUNAN, Marcel; BOWLE, John. Larousse encyclopedia of ancient & medieval history, Paris:Larousse, 1963, p.169; FINLEY, Moses. O legado da Grécia. Brasília:UNB, 1998, p.10

[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Septuaginta

[3] MONDOLFO, Rodolfo. O pensamento antigo: desde Aristóteles até os neoplatônicos, São Paulo: Mestre Jou, 1973, p. 179; KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo testamento, V.I, São Paulo: Paulus, 2005, p. 149

[4] MONDOLFO, Rodolfo. O pensamento antigo: desde Aristóteles até os neoplatônicos, São Paulo: Mestre Jou, 1973, p. 187

[5] MONDOLFO, Rodolfo. O pensamento antigo: desde Aristóteles até os neoplatônicos, São Paulo: Mestre Jou, 1973, p. 287

[6] Palestra sobre Fílon de Alexandria, com Carlos Nougué https://www.youtube.com/watch?v=GVLrS0imTqc

[7] KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo testamento, V.I, São Paulo: Paulus, 2005, p. 157





domingo, 4 de dezembro de 2022

Diógenes e o cinismo

 

Considerada por George Sarton como “a mais elevada doutrina ética do mundo antigo”[1] o estoicismo tinha como objetivo a harmonia da alma do indivíduo com o universo. O Cinismo foi grande influenciador do estoicismo. Segundo o cínico Diógenes de Sinope: “a virtude do homem feliz e uma vida tranquila consistem em serem todas as ações baseadas no princípio da harmonia entre seu próprio espírito e a vontade daquele que dirige o universo”.[2] Para Diógenes (412-323 a.c.), que vivia pelas ruas de Atenas na mais completa miséria e morava em tonel, o não ter necessidade é um sinal de superioridade. Vendo certa vez um menino beber na plama da mão, lançou fora a tigela que usava para beber dizendo “o menino venceu-me no satisfazer-se com pouco”. Ele era conhecido como Diógenes o Cínico pois vivia como um cão pela ruas, e o termo "cínico" deriva do "kynikos", a forma adjetiva de "kynon", que significa "cão"[3] Uma das histórias conta-se que Alexandre, o Grande, ao encontrá-lo, teria perguntado o que poderia fazer por ele. Alexandre se colocara diante de Diógenes numa posição que lhe fazia sombra. Diógenes, então, olhando para Alexandre, disse: "Não me tires o que não me podes dar!". Diógenes não formulou ou transmitiu suas doutrinas mas seu estilo de vida frugal criou exemplos marcantes de comportamento conservados na forma de histórias a seu respeito, muitas das quais reunidas por Metrocles de Maroneia[4].



[1] SARTON, George. Historia de la ciência, Buenos Aires:Editorial Universitaria Buenos Aires, 1959, p. 168

[2] WINTON, R; GARNSEY, Peter. Teoria política. In: FINLEY, Moses. O legado da Grécia. Brasília: UNB, 1998, p. 72

[3] MONDOLFO, Rodolfo. O pensamento antigo: v.I, São Paulo: Mestre Jou, 1964, p. 195

[4] KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo testamento, V.I, São Paulo: Paulus, 2005, p. 159



domingo, 30 de outubro de 2022

A invasão do Rio de Janeiro pelos franceses em 1711

Charles Boxer, por sua vez, destaca que o Tratado de Methuen assinado em 1703 ocorre após o fracasso das negociações com os franceses em 1701 com o rei Sol Luis XIV, e que levou, em represália ao Tratado de Methuen assinado com Inglaterra, aos ataques de corsários franceses realizados no Rio de Janeiro em 1710 por Jean François Duclerc[1] e no ano seguinte por Duguay Trouin.[2] O primeiro historiador a tratar das invasões dos corsários franceses Jean Leclerc e Duguay Trouin foi Rocha Pita. Feito prisioneiro, Duclerc foi assassinado em março de 1711, mesmo mantido sob a guarda de militares portugueses e embora tivesse se rendido através de um acordo. A morte de Leclerc levou a investida de Duguay Trouin em vingança com a cidade. Segundo Jean Marcel Carvalho França, Duguay Trouin só soube da morte de Leclerc ao chegar ao Rio de Janeiro.[3] A Fortaleza de Santiago reformada em 1696 estava em precárias condições de conservação carecendo de material bélico para proteger a cidade quando a frota de Duguat Trouin chegou em 1711. Ao todo a cidade dispunha de 174 canhões e 2800 militares dispostos na ilha de Villegagnon, no Forte São Sebastião, no reduto de São Januário, no reduto de Santa Luzia no Forte de Santiago  conhecido como da Misericórdia. Os franceses chegaram com 17 navios de guerra dotados de 740 canhões e 5800 soldados e marinheiros.[4] O governador Francisco de Castro Morais se retirou depois do desembarque dos franceses, ainda que tivesse a disposição soldados suficientes para resistir aos franceses[5], o que permitiu ao corsário saquear a cidade, depois de ter pernoitado na Fazenda dos Macacos em Vila Isabel[6] no Engenho Velho dos jesuítas[7], além de impor oneroso resgate uma vez que os reforços vindos de Minas Gerais demoraram a chegar.[8] O embaixador Paulo Carneiro descreve como insólitas as homenagens do governo francês a Duguay Trouin em 1973 aos seus trezentos anos de seu nascimento quando seus restos mortais foram levados à sua cidade natal Saint Malo carregados em um baú de jacarandá vindo do Brasil, esquecendo-se do horror do ataque ao Rio de Janeiro e o resgate no montante de 610 mil cruzados em  ouro[9] cujo valor foi conferido na rua da Quitanda esquina com a rua do Sabão[10], 100 caixas de açúcar e 200 bois acrescidos de mais de doze milhões de cruzados em roubos e saques praticados no ataque[11]. No regresso à França um dos navios Magnanime naufragou levando a bordo grande parte do resgate recebido no Rio de Janeiro. Apesar da perda os navios que conseguiram retornar ainda garantiram um bom lucro ao saque, sendo recebidos como heróis na corte francesa.[12]


[1] GOMES, Laurentino. Escravidão v. II, Rio de Janeiro:GloboLivros, 2021, p. 109

[2] BOXER, Charles. A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial. São Paulo:Cia Editora Nacional, 1969, p. 110,156

[3] GOMES, Laurentino. Escravidão v. II, Rio de Janeiro:GloboLivros, 2021, p. 110

[4] WINZ, Antonio Pimentel. História da Casa do Trem, Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 1962, p. 46

[5] BOXER, Charles. A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial. São Paulo:Cia Editora Nacional, 1969, p. 119

[6] BORGES, Delane; BORGES, Marilane. A Vila de Isabel e Drummond a Noel, Rio de Janeiro: Lions Internacional, 1987, p. 18

[7] GERSON, Brasil. História das ruas do Rio, Rio de Janeiro: Brasiliana, 1965, p. 109

[8] VIANNA, Helio. História do Brasil, primeira parte, período colonial. São Paulo: Melhoramentos, 1972, p.285

[9] PITTA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa, Belo Horizonte: USP,1976, p. 256

[10] GERSON, Brasil. História das ruas do Rio, Rio de Janeiro: Brasiliana, 1965, p. 110

[11] RODRIGUES, José Honório. História da história do Brasil, São Paulo: Cia Editora Nacional, 1979, p.362

[12] BOXER, Charles. A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial. São Paulo:Cia Editora Nacional, 1969, p. 125



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