domingo, 17 de julho de 2022

Os mistérios inefáveis herméticos

 

Na antiguidade de tradição oral as possibilidades de difusão das técnicas eram maiores porque a tolerância ao erro era maior o que fazia os sacerdotes a dedicarem a fundamentar sua mensagem para poder transmiti-los corretamente, ao passo que com a escrita, esta reprodução era mais mecânica, se limitava a copiar um texto sagrado. O mesmo ocorreu na Babilônia onde muitas tabuinhas lançam maldições aos copistas que modificarem qualquer parte dos textos antigos tal como se reflete no Apocalipse 22:19 “E, se alguém tirar quaisquer palavras do livro desta profecia, Deus tirará a sua parte do livro da vida, e da cidade santa, e das coisas que estão escritas neste livro”.[1] Para Platão os mistérios não podem ser transmitidos pela palavra escrita por uma limitação da própria escrita, uam vez que os mistérios são inseparáveis da experiência individual.[2] No terceiro sermão de Hermes, ele adverte que “não é possível transmitir estes mistérios aos desprovidos da sagrada iniciação nos ritos”. Asclépio adverte ao rei Ammon para que não traduza os sermões de Hermes escritos em hieroglifos egípcios para o grego: “Evitai que esse nosso sermão seja traduzido, a fim de que esses poderosos mistérios não cheguem aos gregos, nem à desdenhosa língua da Grécia, com toda a sua soltura e sua beleza artificial, que tiram toda a força do solene e do potente, a língua energética dos nomes”.[3] Da mesma forma os oráculos caldeus recomendam: “Jamais modifiqueis nomes bárbaros, pois em toda nação há nomes que vêm de Deus, tendo inenarrável eficácia nos mistérios”. Arthur Versluis observa que o declínio do uso dos hieroglifos foi acompanhado pelo declínio da religião dos mistérios no Egito que não pode ser transmitido em sua totalidade para o grego ou ao Ocidente por uma limitação da linguagem escrita. Arthur Versluis observa que Platão ao se referir à perda de memória que a escrita proporciona está se referindo à memória do reino celestial e da realidade divina, pois a escrita não é capaz de sintetizar o archetypos divino: “em todas as tradições sagradas atribui-se aos sons uma significação celestial intrínseca, uma ressonância mântrica, uma correspondência divina, razão por que em sua forma  mais primordial (prisca teologia)  a língua é transcendente de maneira integral, religiosa por natureza: puramente sagrada, sendo a um só tempo reflexo e invocação da realidade divina”. Segundo Schwaller de Lubicz: “a escrita hieroglífica é a ultima forma de escrita simbólica esotérica, tanto na configuração de seus signos como em seu colorido e significação. O simbólico esotérico é diferente da linguagem ordinária, tem natureza mágica. Ele compartilha da magia dos análogos”. Segundo Jâmblico em De mysteriis VII: “Todo dialeto das nações sagradas, tais como a dos egípcios e assírios, é adaptado  a preocupações sacras, diante disso, convém julgar necessário que o nosso contato com os deuses ocorra numa língua associada com eles”. Segundo o Corpus hermeticum: “os gregos utilizam palavras, meros ruídos, mas nós os egípcios utilizamos palavras cheias de realidade”[4] Este ceticismo com respeito a se transmitir a ciência pela forma escrita é refletida no Fedro de Platão em que o rei Tamuz se queixa com Thoth inventor da escrita de que sua invenção levaria ao desprezo da memória e do papel dos mestres: “Você como pai das letras tem sido guiado sua afeição em atribuir a eles um poder oposto do que eles realmente possuem [...] Esta tua descoberta [a escrita] gerará esquecimento nas almas dos aprendizes, porque eles não utilizarão a sua memória, confiarão em caracteres escritos exteriores e não se lembrarão de si mesmos. O específico que descobriste não é um auxiliar/elixir da memória, mas sim da reminiscência, e tu dás aos teus discípulos não a verdade, mas apenas a aparência de verdade; eles serão ouvidores de muitas coisas e não terão aprendido nada; porque quando verem que podem aprender muitas coisas sem mestre, já se tomarão por sábios, e não serão mais que ignorantes, na sua maioria, e falsos sábios insuportáveis no comércio da vida”.[5]



[1] ALVAREZ, Lopez. O enigma das pirâmides, São Paulo:Hemus, 1978, p.129

[2] VERSLUIS, Arthur. Os mistérios egípcios, São Paulo: Cultrix, 1988, p.103

[3] VERSLUIS, Os mistérios egípcios, São Paulo: Cultrix, 1998, p. 99

[4] VERSLUIS, Os mistérios egípcios, São Paulo: Cultrix, 1998, p. 100

[5] ALVAREZ, Lopez. O enigma das pirâmides, São Paulo:Hemus, 1978, p.135; BOORSTIN, Daniel. Os descobridores, Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1989, p.441; ROBINSON, Andrew. The story of writing, London: Thames and Hudson, 1995, p.8




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