Gershom Scholem mostra que para os cabalistas a Torá foi criada dois mil anos antes da criação do mundo, quando o Nome divino, ou as sefirots divinas, emanaram da essência oculta de Deus.[1] Os cabalistas de Safed do século XVI acreditavam que no Sinai haviam 600 mil pessoas com base em Êxodo 12:37 “Os filhos de Israel partiram de Ramsés em direção a Sucot, cerca de seiscentos mil homens a pé – somente homens, sem contar suas famílias (mulheres e crianças)”, de modo que cada alma possui uma letra da Torá, que forma o corpo místico da Torá, muito embora texto tenha cerca de 340 mil letras. Nesta interpretação as mulheres, portanto, não tem qualquer relação direta com a Torá. Esta Torá original teria sido reorganizada para sua forma atual. O cabalista Abraão Azulai (1570-1643) explica que em Deuteronomio 22:11 temos no texto hebraico a restrição ao uso de linho misturado ao de lã (schaatnetz tzemer ufischtim)[2].Na época em que o homem vivia no paraíso vestido de trajes espirituais tal restrição não teria feito sentido. Rearranjando as letras é possível resgatar o texto original: satan as metzar utofsim – satanás insolente trará medo e aflição tentando apoderar-se do homem. O sábio judeu Cordovero explica que a mudança se fez necessária porque a natureza de Adão se tornou material depois da sua queda, necessitando assim de uma Torá que desse mandamentos materiais, o que exigiu uma nova leitura e reorganização das letras para transmitir o significado de um mandamento: “o mesmo ocorre com todos os outros mandamentos baseados na natureza corpórea e material do homem [...] No que diz respeito às novas interpretações da Torá, que Deus revelará na Era Messiânica, podemos afirmar que a Torá permanecerá a mesma eternamente, porém, no começo, ela assumiu a forma de combinações materiais de letras, que se adaptavam ao mundo material. Mas um dia os homens hão de se desfazer deste corpo material, serão transfigurados e recuperarão o corpo místico de Adão antes da queda. Então compreenderão o mistério da Torá, seus aspectos ocultos se tornarão manifestos. E mais tarde quando ao fim do sexto milênio (isto é, após a verdadeira redenção messiânica e o começo da nova eternidade) o homem se tornar um ser espiritual ainda mais elevado, penetrará ainda mais profundamente nos mistérios ocultos da Torá. Qualquer pessoa então será capaz de entender o conteúdo milagroso da Torá e as combinações secretas e destarte aprenderá muito a respeito da essência secreta do mundo [...] Pois a ideia fundamental da presente dissertação é que a Torá, como o próprio homem, veste um traje material. E quando o homem se elevar de seu traje material (isto [e, de sua condição corpórea) para um mais sutil, também a manifestação material da Torá será apreendida em graus sempre crescentes. As faces veladas da Torá tornar-se-ão radiantes e os justos a estudarão. No entanto, em todas estas fases, a Torá será sempre a mesma que ela foi no começo, sua essência nunca mudará”. No mesmo sentido Isaac Luria (1534-1572)[3]: “No paraíso, o sentido dos mandamentos era diferente e bem mais espiritual do que agora, e aquilo que os homens piedosos cumprem agora na execução material dos mandamentos, eles hão de cumprir então, no traje paradisíaco da alma, tal como Deus pretendeu quando criou o homem”. Segundo o rabino Sabatai Tzvi (1626-1676), que alegava ter sido o Messias das Escrituras, essa releitura da Torá explica o porque do texto original não conter vogais: “é uma referência ao estado da Torá tal como ela existia à vista de Deus antes de ser transmitida às esferas inferiores. Pois tinha Ele diante de si numerosas letras que não estavam unidas às palavras como hoje é o caso, porque o arranjo real das palavras dependeria de como este mundo inferior se conduzisse. Por causa do pecado de Adão, Deus arranjou as letras à Sua frente em palavras descrevendo a morte e outras coisas terrestres como o casamento por levirato. Sem pecado não haveria morte As mesma letras teriam sido juntadas em palavras contando uma estória diferente. Daí porque o rolo da Torá não contém vogais, nem pontuação, nem acentos, como alusão à torá que originalmente formava um amontoado de letras desconjuntas. O propósito divino será revelado na Torá com o advento do Messias, que subjugará a morte para sempre, de modo que não haverá lugar na Torá para algo relacionado com a morte, impureza e similar. Pois Deus, então, anulará a atual combinação de letras que forma a Torá do presente e comporá as letras em palavras diferentes que formarão sentenças novas, falando de outras coisas. Este é o sentido das palavras de Isaías 51:4: “A Torá sairá de mim”, eu já foram interpretados pelos antigos rabinos como significando: Uma Torá nova sairá de mim. Significa isto que a Torá não tem validade eterna ? Não, significa que o rolo da Torá será como é agora, mas Deus nos ensinará a lê-la e nos iluminará quanto à divisão e combinação das palavras”.[4]
[1] SCHOLEM, Gershom. A cabala e seu simbolismo, São Paulo: Perspectiva, 1988, p.54
[2] SCHOLEM, Gershom. A cabala e seu simbolismo, São Paulo: Perspectiva, 1988, p.81
[3] SCHOLEM, Gershom. A cabala e seu simbolismo, São Paulo: Perspectiva, 1988, p.88
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