domingo, 13 de fevereiro de 2022

Os calunduzeiros e a prática da medicina colonial

 

Em Portugal a botica conventual teve o seu apogeu no final do século XVII. Médicos e cirurgiões são formados em Coimbra no século XVIII em um ambiente de decadência e atraso da medicina na metrópole portuguesa sob influência poderosa dos jesuítas. Serafim Leite relata que o Colégio dos Jesuítas no Rio de Janeiro em 1706 era uma espécie de laboratório central abastecendo as boticas da cidade.[1] Entre os escravos negros, Katia Mattoso observa que o senhor de engenho tão logo soubesse que um escravo era feiticeiro conhecedor de ervas ou magia, tratava de vendê-lo com receio de que pudesse ser envenenado.[2] Mario Sá argumenta que “Apresentando soluções de seus repertórios de magia e feitiçaria, fruto de dinâmica cultural entre europeus, americanos e africanos, conseguiram ocupar alguns espaços em uma sociedade que não lhes oferecia muitas possibilidades”.[3] Gilberto Freyre cita o caso do curandeiro africano “preto Manoel” que no século XIX foi autorizado tratar dos doentes de cólera no Hospital de Marinha do Recife. Diante do óbito de muitos pacientes que compraram “por alto preço o seu remédio” a polícia o advertiu de que não deveria mais exercer tal ofício, o que acabou sendo causa de sua prisão.[4] Roger Sansi mostra que o termo feitiço é uma palavra portuguesa com origem no latim facttitius e que aparece nos editos de D. João I de 1385 a 1403 condenando tais práticas.[5] Segundo Flavio Edler os arquivos da Inquisição mostram que muitos portugueses recorriam as artes de cura de negros.[6] André Nogueira mostra diversos inquéritos junto aos tribunais eclesiásticos de Minas Gerais do século XVIII contra “negros feiticeiros” que eram temidos por muitos senhores, constituindo “um dos poderosos veículos de resistências contra as condições do cativeiro”. Segundo James Sweet: “o poder religioso africano não se limitava a ser uma forma de resolver os problemas locais ou tradicionais, constituía uma ameaça real e perigosa aos proprietários portugueses no Brasil”.[7] André Nogueira mostra os casos de negros escravos acusados de feitiçaria entre os quais Pai Caetano, Matheus Monjolo, Páscoa e Domingos Calunduzeiro (escravo alforriado que possivelmente teria aprendido seus conhecimentos em ervas medicinais de seu antigo senhor que era cirurgião)[8] que conseguiram, em grande medida ser “protagonistas de seus destinos e vidas, graças aos seus reconhecidos saberes terapêuticos”.[9] A grande maioria dos negros acusados de feitiçaria pelos tribunais de Inquisição portugueses não chegaram efetivamente a ser processados, e nenhum sofreu a pena capital. Pedro Paiva mostra que no Reino entre os séculos XVII e XVIII apenas 0,6% das denúncias de fato foram convertidas em processos e tiveram seus réus sentenciados em autos de fé, o que não impediu que muitos tivessem sido açoitados durante a fase de denúncia ou mesmo sido mortos por seus acusadores, como o caso de Manoel Mina levado pelos capitães de mato para ser preso “a ferros”.[10]

[1] CUNHA, Luiz Antonio. Aspectos sociais da aprendizagem de ofícios manufatureiros no Brasil colônia. Forum:Rio de Janeiro, v.2, out/dez 1978, p.38

[2] MATTOSO, Katia M. Queirós. Ser escravo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes. Edição do Kindle, 2016, p.189

[3] SA, Mario. O universo mágico das curas: o papel das práticas mágicas e feitiçarias no universo do Mato Grosso setecentista. Hist. cienc. Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v.16, n.2, Jun.2009, p.342

[4] FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos, São Paulo:Record, 1998, p. 506

[5] NOGUEIRA, André Luis Lima. Entre cirurgiões, tambores e ervas, Rio de Janeiro: Garamond, 2016, p.73

[6] EDLER, Flavio Coelho. Saber médico e poder profissional: do contexto luso-brasileiro ao Brasil Imperial. In: Carlos Fideles Ponte; IalêFalleiros. (Org.). Na corda bamba de sombrinha: a saúde no fio da história. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010, p. 31 https://www.epsjv.fiocruz.br/upload/d/cap_1.pdf

[7] NOGUEIRA, André Luis Lima. Entre cirurgiões, tambores e ervas, Rio de Janeiro: Garamond, 2016, p.143

[8] NOGUEIRA, André Luis Lima. Entre cirurgiões, tambores e ervas, Rio de Janeiro: Garamond, 2016, p.191, 367, 383

[9] NOGUEIRA, André Luis Lima. Entre cirurgiões, tambores e ervas, Rio de Janeiro: Garamond, 2016, p.398

[10] NOGUEIRA, André Luis Lima. Entre cirurgiões, tambores e ervas, Rio de Janeiro: Garamond, 2016, p.381, 383



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Doação de Constantino

  Marc Bloch observa a ocorrência de falsificações piedosas tais como a pseudo doação de Constantino ( Constitutum Donatio Constantini ) ao ...