quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

O papel da escrita no Egito Antigo

 

Entre os livros sapienciais usados na casa da Vida encontram-se o Ensinamento de Ptah-hotpe, Canto do Harpista, Sátira dos Ofícios e a História de Sinuhe[1] escrita no Médio Império[2] (XI e XII dinastias)[3]. Guilherme Oncken destaca que a arte da escrita criou um verdadeiro abismo entre a massa popular e os sábios, formou-se uma “aristocracia de sábios”.[4] Segundo um antigo manuscrito egípcio: “Escolhei a profissão de escriba para que as vossas penas se tornem macias e as vossas mãos suaves, para que vos seja permitido trajar uma túnica branca e para que os homens de importância vos cumprimentem com respeito [...] A profissão de escriba é mais lucrativa do que qualquer outra profissão. Não tereis de vos dedicar ao trabalho manual. Não tereis necessidade de empunhar uma enxada, uma picareta ou cesto, ou mesmo de remar um barco. A vossa vida estará isenta de preocupações”.[5] Uma das ironias é que muitos dos textos que conhecemos do Egito Antigo são cópias imperfeitas feitas por alunos durante seus exercícios, dos quais eles jamais imaginariam que iriam perpetuar tais obras por milênios.[6] David Lindberg[7] aponta que “A escrita serviu, assim, a uma função de armazenamento, substituindo a memória como o principal repositório de conhecimento. Isso teve o efeito revolucionário de abrir as reivindicações de conhecimento à possibilidade de inspeção, comparação e crítica. [...] A invenção da escrita foi um pré-requisito para o desenvolvimento da filosofia e da ciência no mundo antigo. Em segundo lugar, o grau em que a filosofia e a ciência floresceram no mundo antigo foi, em um grau muito significativo, uma função da eficiência do sistema de escrita (a escrita alfabética tendo uma grande vantagem sobre todas as alternativas) e a amplitude de seu sistema de escrita. difusão entre o povo”. A Sátira das Profissões / Sátira dos Ofícios que deve remontar ao segundo milênio a.c. menciona dezoito tipos distintos de ofícios entre as quais, escriba, sacerdote, soldado, médico, arquiteto entre as mais nobres e demais como barbeiro, embalsamador, carpinteiro, curtidor do couro, sendo que o ofício de escriba se destaca pela importância diante de outras profissões: “Nunca vi um escultor ser mandado para uma embaixada, nem um fundidor de bronze liderando uma missão. Eu vi ferreiros trabalhando na boca da fornalha. Seus dedos são como garras de crocodilo. Eles fedem como ovas de peixes podres. O artesão de qualquer tipo que lida com o cinzel - não emprega tanto movimento quanto aquele que lida com a enxada.[8] Segundo Max Weber: “Quanto mais desenvolvida a técnica de escrita e dos cálculos, tanto mais forte o poder central [...] Os escribas dominavam no antigo Egito a administração [...] No Egito, durante o Império Médio havia um feudalismo oficial ou administrativo e no Novo uma administração burocrata de escribas [...] O primeiro regime burocrático patrimonial conhecido levado em prática em toda sua consequência foi o do Antigo Egito”.[9]  Jean Vercoutter, por sua vez, observa que jamais houve feudalismo no Egito nos termos que se conhece da Europa Ocidental medieval, o que houve foi usurpações de poder local, reconhecidos pelo rei incapaz de reprimi-las.[10]



[1] ROSSI, Renzo. Tutankamon, Lisboa:Público, 2009, p.161

[2] JOHNSON, Paul. História Ilustrada do Egito. Rio de Janeiro:Ediouro, 2002, p. 259

[3] VERCOUTTER, Jean. O Egito antigo, São Paulo:DIFEL, 1974, p. 34

[4] ONCKEN, Guilherme. História Universal. História do Antigo Egito, v.I, Rio de Janeiro:Bertrand, p.51

[5] WHITE, Jon Manchip. O Egito Antigo, Rio de Janeiro:Zahar, 1966, p. 145; JOHNSON, Paul. História Ilustrada do Egito. Rio de Janeiro:Ediouro, 2002, p. 259

[6] British Museum Guide, London, 1976, p. 47

[7] Lindberg, David C.. The Beginnings of Western Science. University of Chicago Press. Edição do Kindle, 2007, p. 11

[8] MUMFORD, Lewis. A cidade na história, São Paulo:Martins Fontes, 1982, p. 119; MASPERO, Gaston. History Of Egypt, Chaldæa, Syria, Babylonia, and Assyria, v. 2, London:Grolier Society, 1896. http://www.gutenberg.org/files/17322/17322-h/17322-h.htm

[9] WEBER, Max. Economia y sociedade: esbozo de sociologia compreensiva, Mexico:Fondo de Cultura, 1969, v.II, p. 787, 828, 952

[10] VERCOUTTER, Jean. O Egito antigo, São Paulo:DIFEL, 1974, p. 62



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Doação de Constantino

  Marc Bloch observa a ocorrência de falsificações piedosas tais como a pseudo doação de Constantino ( Constitutum Donatio Constantini ) ao ...