quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

A metodologia do disputatio medieval e as origens da ciência

 

Para Cesare Cantu: “A escolástica corresponde no campo intelectual, ao feudalismo no campo político; é uma isolação na qual o homem fortifica a cabeça pela contemplação racional do infinito”. A busca dos escolásticos de conciliar a fé com a razão levou ao homem a confiança nesta unidade, de que havia um sistema lógico explicativo da natureza passível de ser assimilável pelo homem: “esta unidade contribui para habituar as inteligências modernas a uma maneira de raciocinar sucinta, à ordem e à economia das ideias, a um método constante; elas puderam deste modo desenvolver os pensamentos morais e metafísicos de que a escolástica tinha semeado os germes, mudando a forma, não obstante conservar-lhe o fundo”. [1] O método escolástico previa a leitura – lectio dos argumentos com comentário – quaestio e análise do texto bem como seus fundamentos e um segundo momento para a disputatio – debate sobre o argumento inicialmente colocado e contra argumentação e as questões quaestio levantadas[2]. O processo termina com uma exegese -  a sententia na qual se discute os argumentos dos comentadores aprovados como autoridades no tema.[3] Neste debate a escolástica usava de dialética, isto é, uma forma de se provar certa proposição com base em argumentos contrários a ela[4]. Segundo Roberto de Sorbonne: “nada pode ser conhecido perfeitamente antes de ter sido ruminado pelos dentes da disputatio”.[5] Tomás de Aquino explica que “assim como um juiz não pode sentenciar em um Juízo até haver escutado as duas partes, assim o homem que estuda a filosofia julga melhor se observa o choque das ideias, como o de dois adversários em luta”.[6] Ricardo da Costa :”para os medievais, ler sem julgar era a mesma coisa que comer sem dizer o que achou do que comeu ... Todos os pedagogos medievais consideravam essa função essencial – e somente este aspecto do estudo da gramática nos mostra o quanto regredimos hoje”.[7] Para Hilário Júnior a idade média é a matriz da civilização ocidental. A aceitação de uma unidade cosmológica e de um racionalismo teórico permitiu lançar os fundamentos da ciência.[8] Franco Alessio mostra que o modelo da lectio e quaestio escolástico embora à primeira vista possa se aproximar dos diálogos de Platão, na verdade, dele se afasta pois na escolástica o interlocutor imaginado pelo mestre não colabora com sua pesquisa mas se coloca em contraposição ao texto da “autoridade”: “o escolástico surge nesse combate como um paladino armado de lógica, que batalha tal como o cavaleiro e que exorciza tal como o padre”. A escolástica, portanto, é um produto de sua época. [9] Para Daniel Rops: “a fé, bem longe de ser esterilizante, era o fermento que atuava na massa, obrigando-a crescer”.[10] Franco Alessio observa que embora a escolástica marque o triunfo das doutrinas de Aristóteles, tal base filosófica não alcança uma unidade geral: “a doutrina aristotélica é a base comum dos escolásticos, sem, contudo, constituir uma unidade efetiva ou intrínseca”. A unidade escolástica, contudo, reside inteiramente no método de análise dos textos canônicos e menos na doutrina.[11]



[1] CANTU, Cesare. História Universal, volume XIV, São Paulo:Editora das Américas, 1955, p. 339

[2] FOSSIER, Robert. O trabalho na idade média. Rio de Janeiro: Vozes, 2018, p. 225; ROPS, Daniel. A Igreja das catedrais e das cruzadas. São Paulo: Quadrante, 2012, p. 349

[3] MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura, São Paulo: Cia das Letras, 1997, p. 96

[4] JUNIOR, Hilário Franco. A idade média nascimento do Ocidente. São Paulo:Brasiliense, 1986, p. 142

[5] DAWSON, Christopher. Criação do Ocidente, São Paulo: É Realizações, 2016, p.233

[6] AQUINO, Felipe. Uma história que não é contada, Lorena: Cleofas, 2008, p. 131

[7] COSTA, Ricardo da; VENTORIM, Eliane; FILHO, Orlando Paes. Monges medievais, São Paulo:Planeta, 2004, p.10

[8] JUNIOR, Hilário Franco. A idade média nascimento do Ocidente. São Paulo:Brasiliense, 1986, p. 170

[9] ALESSIO, Franco. Escolástica. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude. Dicionário analítico do Ocidente medieval. v.I, São Paulo:Unesp, 2017, p. 418

[10] ROPS, Daniel. A Igreja das catedrais e das cruzadas. São Paulo: Quadrante, 2012, p. 352

[11] ALESSIO, Franco. Escolástica. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude. Dicionário analítico do Ocidente medieval. v.I, São Paulo:Unesp, 2017, p. 416



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