domingo, 23 de janeiro de 2022

O império socialista dos incas

 

Entre os incas o regime de trabalho se assemelhava a um coletivismo[1] uma vez que o índio possui privativamente a colheita de sua tupu/tupo, ou seja, o lote de terra[2]. Entre os ayllus andinos se pode dizer que cada criança nascia com o futuro garantido porque cada homem dentro da comunidade tinha seu tupo de terra garantido e cada mulher meio tupo[3]. Ayllu é a unidade social básica baseada no coletivismo, o nome dado às comunidades étnicas da área andina, ligadas entre si por laços de parentesco. A terra constituía propriedade estatal trabalhada coletivamente.[4] Mesmo na capital Cusco a cidade também se organizada em comuna aylly.[5] Coexistia entre os incas três regimes de propriedade: a propriedade nacional que incluía edifícios públicos, pastos e minas; a propriedade coletiva com exploração comum ou familiar e a propriedade privada de terras provenientes de doações, esta última menos importante.[6] O direito de propriedade era, portanto, muito limitado entre os incas. Na vida cotidiana os jatunrunas (a grande massa da população submetida ao trabalho compulsório[7]) não distinguiam entre a propriedade pessoal e a estatal, pois dentro da comunidade não se permitia a propriedade privada do solo, de modo que os informes da época se referiam “terras dos incas”.[8] Os produtos eram compartilhados pela comunidade segundo suas necessidades ficassem o remanescente controlado pelo Estado[9]. Nos ayllu todos os membros do grupo  eram solidários e herdavam em comum a marca, terreno inalienável que era dividido em parcelas, em que a cada ano se procedia novas redistribuições. Cada ayllu era comandado por um líder eleito, o mallcu orientado por um conselho de anciãos, os amautas. Os domínios do Estado eram atribuídos as linhagens imperiais (panac). Paralelamente a este domínio estatal os curaca mais importantes possuíam terras particulares, no entanto, mesmo o nobres não tinham o direito de desfrutar de mais terra do que o necessário para subsistência de sua família.[10] Entre os incas não haviam escravos senão campesinos submetidos a prestações de serviços calculadas por turnos, uma vez que a ninguém se obrigava a trabalhar por toda sua vida.[11] No período tardio sob Huayna Capac haviam os pina y pinacuna (em quéchua o plural é feito adicionando-se a partícula cuna)[12], prisioneiros de guerra, que poderiam se enquadrar como escravos, contudo não há registro de tráfico de pinas.[13] Os yana eram “servidores perpétuos”  que serviam à aristocracia nos palácios, templos e campos, e podem constituir uma escravatura disfarçada, ainda que pudessem ser vistos na sociedade como uma mão de obra privilegiada pelo contato estreito com a nobreza.[14] A estrutura política era altamente hierarquizada na forma de uma pirâmide em que no topo estava o Sapa Inca. Na base da pirâmide estavam os puric, homens trabalhadores. Cada dez homens tinham como chefe o cancha camayoc. A cada dez cancha camayoc estavam submetidos em supervisor pachaca curaca que por sua vez estavam submetidos ao hono curaca da tribo e ao governador.[15] Em 1928 Louis Baudin publicou O império socialista dos incas em que critica a perspectiva do testemunho de Garcilaso de la Veja que descreve a bondade e sabedoria dos imperadores como elemento de união da sociedade inca. Louis Badin ao contrário destaca o papel da violência para imposição de uma ordem baseada em um comunismo agrícola[16]. José Carlos Mariategui, o fundador do marxismo latino-americano, se refere a comunismo inca, para descrever as comunidades indígenas (ayllus) na base da sociedade inca anterior à colonização hispânica: “o socialismo, afinal, está na tradição americana. A mais avançada organização comunista primitiva que a história registra é a inca”.[17] Waldemar Soriano destaca diversas teses que buscam explicar a forma de organização do império inca: comunismo agrário, socialismo totalitário, escravismo patriarcal, feudalismo, modo de produção comunal tributário conhecido como modo de produção asiático, ou algum modo de produção andino sui generis, no entanto ele reconhece que é possível identificar a coexistência de diferentes modelos.[18] Henri Favre argumenta baseado nos trabalhos de John Murra que a sociedade inca tinha muito mais analogia com a África e Oceania contemporâneas do que com a Europa medieval.[19] De qualquer forma como observado por Toynbee pouquíssimas sociedades no mundo conseguiram alcançar tal grau de desenvolvimento de forma isolada, sem contato com outros povos.[20]



[1] CLARK, Grahame. A pré história, Rio de Janeiro:Zahar, 1975, p. 278

[2] BAUDIN, Louis. El império socialista de los incas, Santiago Chile:Ediciones Rodas, 1973, p.197

[3] SORIANO, Waldemar. Los incas: economia sociedade y estado em la era del Tahuantinsuyo, Peru:Amaru Editores, 1997, p. 158

[4] LONGHENA, Maria; ALVA, Walter. Peru Antigo. Grandes civilizações do passado. Madrid:Folio, 2006, p.74

[5] HAGEN, Victor. Realm of the incas, New York: New American Book, 1961, p. 46

[6] BAUDIN, Louis. El império socialista de los incas, Santiago Chile:Ediciones Rodas, 1973, p.204

[7] SORIANO, Waldemar. Los incas: economia sociedade y estado em la era del Tahuantinsuyo, Peru:Amaru Editores, 1997, p. 226

[8] SORIANO, Waldemar. Los incas: economia sociedade y estado em la era del Tahuantinsuyo, Peru:Amaru Editores, 1997, p. 199

[9] BAUDIN, Louis. A vida quotidiana dos últimos incas, Lisboa:Ed. Livros do Brasil, p. 232, 239

[10] VALLA, Jean Claude. A civilização dos incas, Rio de Janeiro: Otto Pierre, 1978, p. 223

[11] SORIANO, Waldemar. Los incas: economia sociedade y estado em la era del Tahuantinsuyo, Peru:Amaru Editores, 1997, p. 284

[12] HAGEN, Victor. Realm of the incas, New York: New American Book, 1961, p. 44

[13] SORIANO, Waldemar. Los incas: economia sociedade y estado em la era del Tahuantinsuyo, Peru:Amaru Editores, 1997, p. 294

[14] VALLA, Jean Claude. A civilização dos incas, Rio de Janeiro: Otto Pierre, 1978, p. 230

[15] HAGEN, Victor. Realm of the incas, New York: New American Book, 1961, p. 46

[16] VALLA, Jean Claude. A civilização dos incas, Rio de Janeiro: Otto Pierre, 1978, p. 214

[17] MARIÁTEGUI, José Carlos. Por um socialismo indo-americano: ensaios escolhidos. (seleção de Michael Löwy). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005. TIBLE, Jean. José Carlos Mariátegui: Marx e América Indígena, cadernos cemarx, nº 6 – 2009, p.97-114

[18] SORIANO, Waldemar. Los incas: economia sociedade y estado em la era del Tahuantinsuyo, Peru:Amaru Editores, 1997, p. 492

[19] FAVRE, Henri. A civilização inca, Rio de Janeiro: Zahar, 1987, p.30

[20] SORIANO, Waldemar. Los incas: economia sociedade y estado em la era del Tahuantinsuyo, Peru:Amaru Editores, 1997, p. 498



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