sábado, 13 de novembro de 2021

O pecado mortal da usura e do lucro

 

Segundo Pirenne: “A ideia do lucro e ainda a própria possibilidade de realizar lucro são incompatíveis com a situação do latifúndio medieval. Como não tivesse meio algum, por falta de mercados externos, de produzir em função da venda, não precisava esforçar-se para obter da sua gente da sua terra um excedente que constituiria para ele um estorvo. Uma vez que é obrigado a consumir, ele mesmo, suas rendas, limita-se a ajustá-las às suas necessidades. Sua existência está assegurada pelo funcionamento tradicional de uma organização que nem ao menos trata de melhorar”. [1] Na França do século XII o lucro comercial e a usura ainda era visto como pecado mortal.[2] Santo Ambrósio referia-se a propriedade privada como “uma usurpação execrável”. [3] Tomás de Aquino referia-se ao lucrum moderatum.[4] O papa Leão I, o Grande em meados do século V sintetiza uma fórmula que se dissemina por toda a idade média: “O lucro usurário do dinheiro é a morte da alma” - “fenus pecuniae, funus est animae”.[5] Segundo Wiliam Letwin a filosofia medieval “o mercador era identificado com o pecado da cobiça, e ate mesmo o puro ato do comércio, negotium, era considerado como essencoialmente vicioso”.[6] Pela decretal Consuluit de Urbano III integrada  Código de Direito Canônico de 1187 receber usura, ou seja, tudo aquilo que é pedido em troca de um empréstimo além do próprio bem emprestado, constitui um pecado proibido pela Igreja. Em 1094 no Concílio de Reims, o papa Leão IX reprovava a usura. Em 1139 no Concílio de Latrão os usurários foram declarados infames. O Concílio de Latrão III em 1179 declarou pena de excomunhão a todos os que negociassem com usurários. [7] Em 1142 o Decreto de Graciano (em latim Decretum Gratiani ou Concordia discordantium canonum) uma obra de direito canónico que compila a totalidade das normas canónicas existentes desde os séculos anteriores, inclui o seguinte preceito: “Todo aquele que compra uma coisa para revendê-la intacta, tal como está, auferindo um lucro, assemelha-se ao mercador que foi expulso do Templo”. Henri Pirenne destaca a contribuição para a agricultura da condenação à usura: “Ao proibir a usura por motivos religiosos, a Igreja prestou um assinaldo serviço à sociedade agrícola da alta Idade Média, pois lhe poupou a chga das dívidas de caráter alimentar, que a Antiguidade sofreu tão dolorosamente”.[8] O judeu Jacob d´Ancona em 1270 revela a hipocrisia de muitos prelados católicos: “Ó, como tais blasfemos pregam a pobreza, mas, como outros homens, cobiçam a riqueza, queixando-se contra o comércio como se fosse um perigo para a alma e chamando o mercado de ministro do demônio. Do mesmo modo declaram que a usura é um crime contra a generosidade divina, mas seus próprios prelados emprestam dinheiro por penhores e lucros além dos permitidos aos judeus, enquanto ainda outros cristãos emprestam a eles, como os Salimbeni [de Florença] emprestaram sem vergonha ao abade [cisterciense] de Fiastra a 100 por cento de juros quando eles caíram na ruína. Pois em toda a parte os cristãos dizem falsidades sobre o dinheiro, declarando que os seus empréstimos são de graça, enquanto os nossos [dos judeus] são usurários, mas co falsas contas de preço e pagamento escondem seus grandes lulcros. Assim esses pios cidadãos, que não passam eles próprios de usurários, declaram com um documento falso que venderam bens a quem lhes tomou dinheiro, e que deve pagar por ele num dia posterior a um preço maior, e usam de muitos estratagemas além desses”.[9] Jacques le Goff observa o paradoxo do usurário, hoje visto como o precursor dos fundamentos do sistema capitalista, mas que em sua época foi desonrado na tradição cristã. Para Jacques le Goff o pecado da usura constitui um “obstáculo ideológico” que entravou e retardou o desenvolvimento de um novo sistema econômico que a partir do século XIII começa a surgir com o desenvolvimento das técnicas agrícolas, o crescimento das cidades e do comércio: “tudo isso não se chamava progresso (será preciso esperar o século XVIII) mas era sentido como um crescimento”.[10]



[1] PIRENNE, Henri. História econômica e social da Idade Média, São Paulo. Ed. Mestre Jou, 1978, p. 69

[2] DUBY, Georges. O tempo das catedrais.Lisboa:Estampa, 1979., p.115

[3] BURNS, Edward McNall. História da civilização ocidental, Rio de Janeiro:Ed. Globo, 1959, p.349

[4] FOSSIER, Robert. O trabalho na idade média. Rio de Janeiro: Vozes, 2018, p. 59, 200

[5] LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida, São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 32

[6] GIANNETTI, Eduardo. Vícios privados, benefícios públicos ? São Paulo:Cia. das Letras, 1993, p. 118

[7] AQUINO, Felipe. Uma história que não é contada, Lorena: Cleofas, 2008, p. 212

[8] ROPS, Daniel. A Igreja das catedrais e das cruzadas. São Paulo: Quadrante, 2012, p. 306

[9] SELBOURNE, David. Cidade da luz, Rio de Janeiro: Imago, 2001, p. 245

[10] LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida, São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 69



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