quinta-feira, 18 de novembro de 2021

A condenação das teses de Averrois em Paris no século XIII

 

Para os averroístas tudo no universo está conectado de modo que Deus não poderia fazer a matéria sem o auxílio dos corpos celestiais: “se os céus parassem de se movimentar, o fogo não queimaria a lenha, porque Deus não existiria”. Segundo o prólogo do Syllabus do bispo de Paris de 1277: “Eles [os filósofos averroístas ou tomistas] dizem que certas coisas são verdadeiras segundo a filosofia, embora não o sejam segundo a fé católica, com se houvesse duas verdades contrárias, como se a verdade das Santas Escrituras pudesse ser contradita pela verdade dos textos desses pagãos que Deus condenou”.[1] Segundo José Silveira da Costa com as condenações do averroísmo de 1270 em 1277 em Paris “ficava definitivamente abortada uma das poucas e mais promissoras tentativas de se conquistar a liberdade de pensamento e de investigação filosófica no âmbito do pensamento cristão medieval”.[2] Godofredo de Fontaines, professor de teologia de Paris fez ampla campanha entre 1290 e 1295 contra a condenação, por impedir o conhecimento da verdade em algumas teses não contrárias a fé. Raimundo Lúlio por sua vez apoiava a condenação pois todas as condenações diziam respeito a questões de fé.[3] Para Hooykaas ao condenar as teses averroístas, que estabeleciam limites a Deus e ao funcionamento da natureza, constituindo por extensão entraves à liberdade da pesquisa científica, o bispo Tempier, ainda que inadvertidamente, abriu espaço para o pensamento científico.[4] Enquanto os averroístas diziam que Deus não poderia criar formas novas, em conformidade com uma doutrina de formas eternas que caracterizariam a natureza, o bispo Tempier ao questionar o aristotelismo irá retirar essa restrição dos atributos de Deus capaz de gerar qualquer forma nova. Estava dado o primeiro passo para que mais tarde os nominalistas do século XIV pudessem enfraquecer ainda mais a doutrina das formas eternas, abrindo a possibilidade para o homem inventar, criar formas artificiais na medida em que se desfaz a distinção entre formas naturais e artificiais, movimentos terrestres e celestiais, movimentos naturais e não naturais (forçados).[5] Enquanto o realismo de bases platônicas acreditava que os chamados universais, isto é, os conceitos abstratos, assumiam uma forma concreta, precedem a existência das coisas (universalia sunt realia ante rem – os universais são realidade antes das coisas), para os nominalistas universaliza sunt nomina post rem – os universais não são reais mas apenas nomes, abstrações de nossa inteligência criadas depois das coisas, meramente para que possam ser designadas.[6] Michael Shank mostra que a condenação das teses de Aristóteles teve alcance local pois, por exemplo, em Oxford no início do século XIII a recepção das teses de Aristóteles foi muito tranquila.[7] O papa Gregório IX resolve apoiar a obra de Tomás de Aquino que escreveu a Summa Teológica entre 1265 e 1273 e acolher as teses de Averrois no que tem de bom.[8]



[1] ALESSIO, Franco. Escolástica. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude. Dicionário analítico do Ocidente medieval. v.I, São Paulo:Unesp, 2017, p. 471

[2] COSTA, José Silveira da. A escolástica cristã medieval, Rio de Janeiro, 1999, p.85

[3] SIMON, Josep Maria Ruiz. A arte de Raimundo Lúlio e a teoria escolástica da ciência, São Paulo:Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2004, p.272,273

[4] HOOYKAAS, R. A religião e o desenvolvimento da ciência moderna, Brasília:UNB, 1988, p.53

[5] HOOYKAAS, R. A religião e o desenvolvimento da ciência moderna, Brasília:UNB, 1988, p.81

[6] JÚNIOR, Hilário Franco. A idade média nascimento do Ocidente, São Paulo:Brasiliense, 2004, p.120

[7] SHANK, Michael. Mito 2: Que a igreja cristã impediu o avanço da ciência. In: NUMBERS, Ronald. Terra plana, Galileu na prisão e outros mitos sobre a ciência e religião, Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020, p. 44

[8] ROPS, Daniel. A Igreja das catedrais e das cruzadas. São Paulo: Quadrante, 2012, p. 364





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