quinta-feira, 11 de novembro de 2021

A condenação aos juros pela Igreja

 

Jean Claude Schmitt mostra que a universidade escolástica não se limitou a questões religiosas tendo levado ao “nascimento do espírito laico” onde foram elaboradas, por exemplo, a justificação teórica do trabalho manual assalariado e a doutrina do “preço justo” bem como do empréstimo monetário a juros tornado lícito apesar da determinação da Igreja em contrário, uma vez que o evangelho em Lucas 6:34 era claro: “dai uns aos outros sem nada esperar em troca”.[1] Para a Igreja o empréstimo a juros era condenável porque significava o mesmo que cobrar pelo uso do tempo, que pertencia somente a Deus. A teoria aristotélica da esterilidade do dinheiro: “dinheiro não engendra dinheiro” também condenava a usura. Nesse sentido o controle na imposição de preços por parte das guildas era sujeito à críticas [2]. O Concílio de Reims em 1049 presidido pelo papa Leão IX reprovava no mesmo nível usurários e fornicadores.[3] Em 1179 no III Concílio de Latrão a Igreja proibiu aos cristãos a prática da usura[4] e declarou excomungados todos os cristãos que negociassem com usurários. A mesma reprovação foi confirmada nos Concílios de Lyon em 1274 e Vienne em 1311, o que mostra que o tema estava sempre presente na vida dos cristãos. Inocêncio III que foi papa de 1198 a 1216 aconselhou que fossem castigos os maiores usurários para que servissem de exemplo para que os cristão não seguissem por tais erros. Por outro lado, Marx relativiza a restrição à usura: “A usura vive nos poros da produção, tal como os deuses de Epicuro vivem no espaço entre os mundos”.[5] Ian Mortimer mostra que com o advento dos relógios mecânicos e a dessacralização do tempo o argumento contrário ao uso de juros foi relativizado.[6]  Daniel Rops observa que a condenação ao lucro dos comerciantes por alguns canonistas como Paucapalea de Bolonha nunca foram tomados literalmente. Religiosos como o eremita Honório de Estrasburgo e Bertoldo de Ratisbona fazem elogios aos negociantes. O teólogo Alvaez Pelayo no século XIV justifica a aplicação de juros em empréstimos em dinheiro em algumas situações tais como em caso de demora no pagamento, em caso de perda, em caso de perigo certo para o capital ou em caso de falta de lucro, o que na prática significava a liberação de juro para diversas situações.[7]



[1] SCHMITT, Jean Claude. Clérigos e leigos. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude. Dicionário analítico do Ocidente medieval. v.I, São Paulo:Unesp, 2017, p. 280

[2] JÚNIOR, Hilário Franco. A idade média nascimento do Ocidente, São Paulo:Brasiliense, 2004, p.45

[3] ROPS, Daniel. A Igreja das catedrais e das cruzadas. São Paulo: Quadrante, 2012, p. 305

[4] GUREVIC, Aron. O mercador. In: LE GOFF, Jacques. O homem medieval, Lisboa: Editorial Presença, 1989, p.168; AQUINO, Fernando, Gilberto, Hiran. Sociedade brasileira: uma história, São Paulo: Record, 2000, p.38

[5] ANDERSON, Perry. Passagens da antiguidade ao feudalismo, Porto: Afrontamento, 1982, p. 216

[6] MORTIMER, Ian. Séculos de transformações. Rio de Janeiro:DIFEL, 2018, p. 152

[7] ROPS, Daniel. A Igreja das catedrais e das cruzadas. São Paulo: Quadrante, 2012, p. 236, 307



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