quinta-feira, 14 de outubro de 2021

O escorbuto nas grandes navegações portuguesas

 

O escorbuto era uma doença que provocava muitas mortes nas viagens de longa duração. Nos versos de Camões em Os Lusíadas (Canto V, 81-82): “E foi que de doença crua e feia, / A mais que eu nunca vi, / desampararam Muitos a vida, / e em terra estranha e alheia / Os ossos para sempre sepultaram. / Quem haverá que, sem o ver, o creia? / Que tão disformemente ali lhe incharam / As gengivas na boca, que crescia / A carne, e juntamente apodrecia. / Apodrecia com um fétido e bruto / Cheiro, que o ar vizinho inficionava; / Não tínhamos ali médico astuto, / Cirurgião subtil menos se achava; / Mas qualquer, neste ofício pouco instructo, / Pela carne já podre assim cortava / Como se fora morta, e bem convinha, / Pois que morto ficava quem a tinha”. Sérgio Buarque de Holanda, mostra que a frota de Cabral ao chegar na Índia foi recebida pelo rei de Melinde que mandou o comandante levar a bordo muitas galinhas, patos, limões e laranjas “as melhores do mundo”. O Piloto Anônimo[1] acrescenta que “em nossos navios tínhamos alguns doentes da boca [escorbuto] e com aquelas laranjas ficaram sãos”. No diário de bordo de Vasco Gama ele descreve um dos primeiros relatos de escorbuto na história das navegações e relata “Estivemos neste rio [na África rumo à Moçambique] por 32 dias, durante os quais armazenamos água, limpamos os navios e consertamos o mastro da São Rafael. Muitos de nossos homens adoeceram neste período. Os pés e as mãos inchavam e as gengivas cresciam tanto sobre os dentes que não podiam comer”.[2] De fato, os registros mostram que apenas três marinheiros morreram de escorbuto na frota de Cabral o que contrata com navegações posteriores como na viagem de Vasco da Gama em 1502 onde morreram mais da metade da tripulação. Georg Friederici associa as mortes por escorbuto como uma das razões da decadência da marinha lusitana.[3] O exemplo mostra que os fundamentos do experimentalismo, neste caso, não foram absorvidos pelos portugueses, muito embora uma das razões para sua não difusão estaria no fato de que os frutos não se conservavam em longas travessias que poderiam levar semanas. Em 1593 Richard Hawkins ao aportar na barra de Vitória no Espírito Santo provisionou seu navio com laranjas e limões distribuindo-os a seus marinheiros, o bastante para curarem-se do escorbuto: “é maravilhoso segredo do poder e sabedoria de Deus o encobrir virtude tamanha e tão mal sabida dessa fruta”.[4] Em 1601 o capitão inglês James Lancaster comandou quatro navios que partiram da Inglaterra em direção à Índia. Em um dos navios os tripulantes tomaram ao longo da viagem suco de limão sem registro de mortes por escorbuto. Nos demais três navios morreram 110 dos 278 marinheiros pela doença. Apesar de identificada a solução, os resultados ainda não se mostravam claros. Em 1747 James Lind, um médico inglês, tendo conhecimento dos resultados obtidos na viagem de Lancaster realizou outro experimento no navio HMS Salisbury em que os pacientes com escorbuto foram curados após poucos dias de tomarem suco de limão e laranja.  Em 1753 James Lind publicou A Treatise of the Scurvy e, em 1757, An Essay on the Most Effectual Means of Preserving the Health of Seamen in the Royal Navy  onde dava conta das condições de vida deploráveis dos marinheiros e das suas dietas deficitárias. Ainda com estes resultados foi somente em 1795 que a Marinha inglesa adotou medidas para ingestão de cítricos antes das viagens. Everett Rogers argumenta que a solução proposta por James Lind não foi adotada porque ele não era considerado um médico de grande prestígio.[5] Os marinheiros ingleses ficaram desde então conhecidos, num termo pejorativo usado por americanos e canadenses, como limeys, com origem em lime juice, pelo consumo de sumo de limão.



[1] RODRIGUES, José Honório. História da história do Brasil, São Paulo: Cia Editora Nacional, 1979, p.7

[2] VELHO, Álvaro. O descobrimento das Índias: o diário da Viagem de Vasco da Gama, Rio de Janeiro: Objetiva, 1998, p. 55

[3] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visões do Paraíso. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 322

[4] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visões do Paraíso. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 325

[5] ROGERS, Everett. Diffusion of innovations. New York: Free Press, 2002, p.7



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