sábado, 23 de outubro de 2021

O enciclopedismo de Plínio

 

Plínio em certa altura de seu livro História Natural ao descrever os homens de um olho só que vivem na Índia, entre outras estórias faz uma ressalva: “contudo, não vi todas essas coisas com meus próprios olhos. Se não são verdadeiras, a culpa é dos autores de livros onde encontrei essas informações”.[1] Lynn Thorndike observa que Plínio parece incrivelmente crédulo e indiscriminado na seleção de seu material de estudo marcado pela falta de qualquer padrão de julgamento entre o que é certo e errado, o que o faz compor uma obra que Thorndike descreve como “um conglomerado de fatos e ficção desordenados e indiscriminados”.[2] Muitas vezes ele assume um tom de ceticismo e censura quanto à credulidade de outros autores. Plínio se refere a possibilidade de se ensinar um elefante a escrever, ou que um dente de hiena capturada quando a lua está em Gêmeos seria um bom repelente de fantasmas, ou que esteve na Índia para assistir uma corrida de homens sem boca que sobreviviam apenas em cheirar flores,[3] a existência de peixinhos do Mediterrâneo conhecidos como Remura, que fazia parar os navios pela mera aderência a eles ou a existência de mulheres que tinham filhos com cinco anos de idade[4]. Para Lynn Thorndlike no conjunto geral sua obra Historia Natural parece um “desordenado e indiscriminado conglomerado de fato e ficção”.[5] Edward Gibbon a descreve como “um imenso registro onde Plínio depositou as descobertas, artes e erros da humanidade”.[6] William Eamon concorda que Plínio se mostra não somente crédulo como muitas vezes inclinado em direção ao bizarro, excepcional e maravilhoso [7]. Francesco Stella mostra que “aquilo a que chamamos maravilhoso ou fantástico é, para os medievais, uma das dimensões do sobrenatural, por sua vez entendido como uma das formas do real” e nesse sentido destacam-se as descrições do sobrenatural (mirabilis) descritos nos bestiários e pela geografia fantástica, o maravilhoso mágico (magicus) do folclore e crenças demoníacas bem como o maravilhoso cristão (miraculosus) que permeia a biografia dos santos.[8] No século III Julianus Solinus publicou a obra Maravilhas do Oriente descrevendo prodígios e monstros de grande repercussão na idade média[9]. No século III Eusébio de Cesareia cita extensamente as obras de Maneto no prefácio de Cronografia em que se refere a “seres maravilhosos” no antigo Egito, híbridos de homem e animal reproduzidos nas estátuas da esfinge[10]. Charles Singer observa que a História Natural de Plínio junto com a obra de Isidoro de Sevilha gozou de muito prestígio na idade média,[11] muito embora não tenha sido muito criterioso em selecionar suas fontes. Sua obra História Ntural foi reeditada dezoito vezes no século XV e cinquenta vezes no século XVI[12]. Em algumas passagens Plínio confere a experiência (experimentum) como o melhor mestre de todas as coisas, mas este termo não se refere ao que denominaríamos de experimento científico, um arranjo preparado para confirmar uma hipótese, mas as experiências do cotidiano. O termo se refere ao conhecimento adquirido por observação direta em oposição pelo que pode ser obtido através de um argumento racional. Dizer algo foi provado por um experimento significa meramente que o fato foi testemunhado pessoalmente[13]. Em algumas poucas vezes o termo é usado no sentido científico como no experimento de se colocar um ovo na água para se observar se ele boia ou afunda e assim determinar se o ovo está fresco, ou no uso de uma lâmpada acesa para em um poço ou mina se detectar a presença de gases nocivos. Plínio não se refere a transmutação de metais ou alquimia exceto quando as trata de práticas fraudulentas.[14] Para René Taton: “Plínio e seus sucessores tardios utilizam raramente observações pessoais, como se houvesse para ele um corte entre o mundo tal como o contemplavam, no qual viviam e a imagem do mesmo apresentada nos livros dos sábios”.[15]

[1] DEARY, Terry. Terríveis romanos. São Paulo:Melhoramentos, 2002, p. 113

[2] GOLDFARB, Ana Maria. O antigo enciclopedismo e a ciência moderna. In: GOLDFARB, José Luiz; FERRAZ, Márcia. Anais VII Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Sâo Paulo: Edusp, 2000, p 55

[3] CAMP, L. Sprague de. The ancient engineers, New York: Ballantine Books, 1963, p. 241

[4] BURNS, Edward McNall. História da civilização ocidental, Rio de Janeiro:Ed. Globo, 1959, p.237; THORNDIKE, Lynn. A History of magic and experimental science, v.II, Columbia University Press, 1923, p.543; SINGER, Charles. From magic to science. New York:Dover, 1958, p.37

[5] THORNDIKE, Lynn. A History of magic and experimental science, v.I, Columbia University Press, 1923, p.51

[6] SINGER, Charles. From magic to science. New York:Dover, 1958, p.12, 178

[7] EAMON, William. Science and the Secrets of Nature: Books of Secrets in Medieval and Early Modern Culture, Princeton University Press, 1994, p.25

[8] STELLA, Francesco. O maravilhoso na literatura medieval. In: ECO, Umberto. Idade média: bárbaros, cristãos e muçulmanos, v.I, Portugal:Dom Quixote, 2010, p.560

[9] GONTIJO, Silvana. O mundo em comunicação, Rio de Janeiro:Aeroplano, 2001, p.79

[10] DANIKEN, Erich. Os olhos da esfinge. São Paulo:Melhoramentos, 1991, p. 48

[11] SINGER, Charles. From magic to science. New York:Dover, 1958, p.141

[12] DELUMEAU, Jean. A civilização do Renascimento, Lisboa:Estampa, 1984, v.II, p.136

[13] EAMON, William. Science and the Secrets of Nature: Books of Secrets in Medieval and Early Modern Culture, Princeton University Press, 1994, p.55

[14] THORNDIKE, Lynn. A History of magic and experimental science, v.I, Columbia University Press, 1923, p.81

[15] GIORDANI, Mario Curtis. História de Roma, Rio de Janeiro:Vozes, 1981, p. 282



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