sábado, 23 de outubro de 2021

O centro do universo: lugar da glória ou da queda ?

 

Embora alguns autores associem a tese geocêntrica como um reflexo do pensamento antropocêntrico, Dennis Danielson observa que estar no centro do universo não era visto como uma glória, mas ao contrário como ponto de convergência da matéria mais inferior, mais rude e mais distante da perfeição[1]. Moses Maimônides (1135-1204) afirmou que “no caso do Universo, quanto mais próximas estão as partes do centro, maior é sua turbidez, solidez, inércia, obscuridade e e escuridão porque mais longe estão do elemento mais elevado, da fonte de luz e brilho”. Maimônides em Mishneh Torah, As leis de santificação da lua nova, rejeita a astronomia pitagórica da harmonia das esferas e se refere a uma antiga tradição esotérica indiana ou mesmo judaica relacionada ao cálculo da lua crescente.[2]  No comentário ao De Caelo de Aristóteles, Tomás de Aquino conclui no mesmo sentido: “no universo, a Terra – em torno do qual todas as esferas circulam e que, como localização, está no centro – é o mais material e grosseiro de todos os corpos”.[3] Pico della Mirandola em Da dignidade humana publicado em 1486, que trata segundo Peter Burke de “uma espécie de manifesto do humanismo renascentista”[4] se refere a Terra como ocupando “as partes imundas e excrementárias do mundo inferior”. Montaigne em Ensaios publicado em 1568 se refere a posição da terra como “alojados aqui na poeira e na sujeira do mundo, pregados e fixados na pior e mais morta parte do universo, no andar mais baixo da casa, o mais longe do arco celestial”. Denis Danielson mostra que ao colocar o Sol no centro do universo Copernico estava exaltando o homem e rebaixando o Sol segundo esta visão tradicional do centro status do centro de universo como algo negativo.  No entanto Denis Danielson mostra que para escapar dessa acusação, Copernico precisou redefinir a posição do centro do universo como lugar de glória de modo a não rebaixar o Sol quando em seu livro De revolutionibus orbium coelestium apresenta a tese heliocêntrica exalta a posição do Sol: “Imóvel, no entanto, no meio de tudo está o Sol. Pois nesse mais lindo templo, quem poria esse candeeiro em outro ou melhor lugar do que esse, do qual ele pode iluminar tudo ao mesmo tempo ? Pois o Sol não é inapropriadamente chamado,por alguns povos, de lanterna do universo; de sua mente, por outros; e de seu governante, por outros ainda [Hermes] o Três Vezes Grande, chama-o de um deus visível, e Electra, de Sófocles, de onividente”.[5] Para Frances Yates “o intenso realce dado ao Sol, nessa nova visão de mundo, era a força propulsora que induziu Copérnico a empreender cálculos matemáticos, sob a hipótese de que o Sol estava realmente no centro do sistema planetário; ele desejava tornar aceitável a sua descoberta apresentando-a dentro do quadro de referências dessa nova atitude”. Em 1611 o poeta John Donne se lamenta que as novas teorias astronômicas haviam deslocado a terra de uma posição privilegiada e a colocado em um mero “subúrbio” do mundo.[6] Para Paolo Rossi o modelo “a cosmologia geocêntrica servia mais para humilhar que para exaltar o homem, sobre o fato de que o copernicanismo foi em parte hostilizado porque atribuía ao homem uma morada elevada demais, transportando-o para um lugar semelhante ao característico dos céus imutáveis e imortais”, desta forma, o modelo heliocêntrico de Copérnico não implicou a uma renúncia de uma visão antropocêntrica do mundo.[7]

[1] CALDEIRA, Henrique. Os antigos NÃO se orgulhavam de estar no centro do universo!, Estranha História, 2020 https://www.youtube.com/watch?v=QyzNdznzDwc STOFFEL, Jean-François. Alexandre Koyré and the Traditional Interpretation of the Anthropological Consequences of the Copernican Revolution. In: Hypotheses and Perspectives in the History and Philosophy of Science. Springer, Cham, 2018. p. 421-452.

[2] LANGERMANN, Tzvi. Torah and science: five approaches from medieval Spain. In:GOLDFARB, José Luiz; FERRAZ, Márcia. Anais VII Seminário Nacional de Hitória da Ciênci e da Tecnologia, São Paulo: Unesp, 2000, p. 34

[3] DANIELSON, Dennis. Mito 6: que as ideias de Copérnico removeram os seres humanos do centro do Cosmos. In: NUMBERS, Ronald. Terra plana, Galileu na prisão e outros mitos sobre a ciência e religião, Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020, p. 83

[4] BURKE, Peter. O polímata, São Paulo: Cia das Letras, 2020, p. 64

[5] RONAN, Colin. História Ilustrada da Ciência: Da Renascença à Revolução Científica. v.3, São Paulo:Jorge Zahar, 2001, p.68; STRATHERN, Paul. O sonho de Mendeleiev: a verdadeira história da química, Rio de Janeiro:Zahar, 2002, p.64, 98; McCLELLAN III, James; DORN, Harold. Science and technology on world history: an introduction. The Johns Hopkins University Press, 1999, p.210; BRONOWSKI, J. A escalada do homen, São Paulo:Martins Fontes, 1979, p.197; BRAGA, Marco; GUERRA, Andreia; REIS, Jose Claudio. Breve historia da ciência moderna, v.II, Rio de Janeiro:Zahar, 2011, p. 73; TATON, René. A ciência moderna: o Renascimento, tomo II, v.I, São Paulo:Difusão, 1960, p. 70; CORNELL, Tim; MATHEWS, John. Renascimento v.II ,Grandes Impérios e Civilizações, Lisboa:Ed. Del Prado, 1997, p. 132; BURTT, Edwin Arthur. As bases metafísicas da ciência moderna. Brasília: UNB, 1984, p. 44

[6] DURANT, Will, 12 lições da história para entender o mundo, Barueri: Faro Editorial, 2018, p. 49

[7] ROSSI, Paolo. A ciência e a filosofia dos modernos, São Paulo, UNESP,1992, p.228



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