quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Sérgio Buarque de Holanda: "O liberalismo jamais se naturalizou em nós"

 

Raimundo Faoro ao comentar o discurso liberal após a independência: “A teia constitucional do primeiro lustro de trinta mostra a dissonância entre as instituições transplantadas e a realidade política. Enquanto o self government anglo saxão, imposto ao Brasil por cópia do modelo norte americano, opera articulado às bases sociais da comunidade integrada, com centro nas famílias e nos grupos locais, organicamente eletivo, o sistema legal imitado nada encontra para sustentar o edifício”.[1] Esta importação de ideias em um país inapto para consumi-las produz na elite o que Raimundo Faoro chama de “convulsão impotente [...] Essa dicotomia, mal definida, difusa, será responsável  pela sua esclerose interna, numa perplexidade que a falta de missão própria converterá em decadência”.[2] Na mesma argumentação Sérgio Buarque de Holanda conclui: “Trazendo de países distantes nossas formas de vida, nossas instituições e nossa visão de mundo e timbrando em manter tudo isso e ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos uns desterrados em nossa terra”.[3] As contradições das teses liberais são expostas por Sérgio Buarque de Holanda: “No Parlamento recitava-se o credo liberal. Incluíam-se na Carta Constitucional de 1824 as fórmulas que a Declaração dos Direitos do Homem consagrara. Afirmava-se que a lei é a expressão da vontade do povo. Teoricamente aboliam-se os privilégios e igualava-se a todos perante a lei, mas ao resguardar-se a propriedade como um dos direitos inalienáveis e imprescritíveis do homem, mantinha-se a contradição que se tornaria geradora de numerosos conflitos: faziam-se revoluções e nome da liberdade, mas em nome do direito de propriedade a nação mantinha escravizados, mais de um milhão de homens”.[4] Para Sérgio Buarque de Holanda: “O fato é que a ideologia impessoal e antinatural do liberalismo democrático, com as suas maiúsculas impressionantes e com as suas fórmulas abstratas, jamais se naturalizou entre nós. Só assimilamos efetivamente esses princípios até o ponto em que coincidam com a negação pura e simples de uma autoridade incômoda, em que confirmavam nosso instintivo horror às hierarquias e em que nos permitiam tratar com intimidade os governantes. A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal entendido”.[5]



[1] FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro, v.1, São Paulo:Ed. Globo, 1975, p.310

[2] FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro, v.2, São Paulo:Ed. Globo, 2000, p.17

[3] SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro, Editora Duas Cidades, 2000, p.11-31; COSTA, Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil, Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1967, p. 5; CUKIERMAN, Henrique. Yes, nós temos Pasteur. Rio de Janeiro: Faperj,2007, p. 412

[4] HOLANDA, Sérgio Buarque. O Brasil monárquico: reações e transações, t.II, v.3, São Paulo:Difusão Europeia, 1967, p.137

[5] FELDMAN, Luiz. Organizar a Desordem: Raízes do Brasil em 1936, Dados 58 (4) Oct-Dec 2015, https://www.scielo.br/j/dados/a/6yHYvzBLYJgD9cXKpSfhJKF/?lang=pt



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