terça-feira, 3 de agosto de 2021

A escolástica e o incentivo ao contraditório: semente da ciência moderna ?

 

Os métodos de ensino nas universidades medievais incluíam a abordagem de perguntas e respostas de Pedro Abelardo no século XII em Sic et non que fomentava debates dos textos. O método foi imitado na Concordância dos cânones discordantes (Concordia discordantium canonum) de Graciano de 1140, professor da Universidade de Bolonha, posteriormente recebeu o nome de Decreto de Graciano e que junto com a Nova Lógica de Aristóteles será o fundamento do método escolástico de Tomás de Aquino.[1] O Decreto de Graciano não se limitou a mera compilação de textos jurídicos, mas acrescentava um dictum, breve comentário pessoal, a qual resumia as contradições constatadas de modo que no século XII constituiu a principal base para o estudo do direito canônico nas universidades nascentes embora não tivesse caráter vinculante, visto não se tratar de um documento oficial.[2] Segundo Pedro Abelardo, professor da Universidade de Paris[3]: “os meus estudantes reclamavam razões humanas e filosóficas; precisavam  mais de explicações inteligíveis do que de afirmações; diziam que é inútil falar se não se exprime a inteligência da proposta e que ninguém pode acreditar em nada sem primeiro compreender”. [4] Pedro de Poitiers da Universidade de Paris é ainda mais claro: “Embora haja a certeza, compete-nos duvidar dos artigos da fé, e procurar, e discutir”.[5] Os escritos de autores gregos minavam a fé, suscitando heresias e exigiam uma resposta, que foi sendo formulada pelo desenvolvimento da escolástica.[6] Para Pedro Abelardo em seu tratado Sic et Non: “a primeira chave da sabedoria é chamada interrogação, diligente e incessante [...] Pela dúvida somos levados à investigação e pela investigação percebemos a verdade[7] [...] a interrogação assídua define-se como a primeira chave da sabedoria e é duvidando que se chega à verdade”[8]. Segundo Pedro Abelardo “a fé é e não é fortalecida pela razão” o que coloca em xeque a máxima de que “sem a fé não há entendimento”[9]. Enquanto Anselmo (1033-109) dizia “preciso acreditar para compreender”, “Eu não compreendo para crer, mas creio para poder compreender’ “credo ut intelligam”[10] revelando a precedência da fé sobre o conhecimento, Pedro Abelardo invertia essa lógica “preciso compreender para acreditar [..] pela dúvida chegamos a questionar, e questionando descobrimos a verdade”.[11] Ruy Nunes mostra que o método do sic et non já estava presente entre os gregos por exemplo no tratado De anima de Aristóteles.[12] O Sic et Non de Abelardo mostra uma argumentação em que os conteúdos da fé não são dados diretamente pela revelação, sempre sujeitas à subjetividade do intérprete humano. O saber cristão deixa de assumir uma especificidade particular e passa a seguir uma epistemologia geral, o que é reforçado com a incorporação dos trabalhos de Aristóteles que ganham nova difusão a partir do século XII.[13] Abelardo reconhece uma limitação no conhecimento humano que não é capaz de aprender as diferenças específicas das coisas sensíveis a não ser formular hipóteses a partir de diferenças acidentais.[14] Iam Mortimer observa que o impacto do racionalismo de Pedro Abelardo foi muito grande, sendo seguido por inúmeros discípulos e pelas universidades: “por ter contribuído para tornar Aristóteles o mais importante filósofo dos estudos dos intelectuais do século XII, por seu desenvolvimento da teologia, por sua ética, por seu raciocínio crítico e pelo impacto indireto nas leis morais de toda a cristandade por sua infuência em Decretum [texto jurídico de Graciano], acho que Pedro Abelardo é o principal aagente de transformações do século”.[15] As doutrinas racionalistas de Pedro Abelardo entraram em conflito com as teses de Bernardo de Clairvaux tendo sido condenadas no Concilio de Sens em 1140. Para Dante, Aristóteles era “o mestre dos que sabem”.[16]

[1] HASKINS, Charles. A ascenção das universidades, São Paulo: Danúbio, 2015, p.738/1743

[2] GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1986, p. 148

[3] HASKINS, Charles. A ascenção das universidades, São Paulo: Danúbio, 2015, p.386/1743

[4] DUBY, Georges. O tempo das catedrais.Lisboa:Estampa, 1979., p.119

[5] DUBY, Georges. O tempo das catedrais.Lisboa:Estampa, 1979., p.120

[6] FREMANTLE, Anne. Idade da fé. Biblioteca de História Universal Life. Rio de Janeiro:José Olympio, 1970, p.97

[7] BURNS, Edward McNall. História da civilização ocidental, Rio de Janeiro:Ed. Globo, 1959, p.372; FREMANTLE, Anne. Idade da fé. Biblioteca de História Universal Life. Rio de Janeiro:José Olympio, 1970, p.95

[8] NUNES, Ruy Afonso da Costa. História da educação na idade média, Campinas:Kirion, 2018, p.259

[9] MORTIMER, Ian. Séculos de transformações. Rio de Janeiro:DIFEL, 2018, p. 63

[10] COSTA, José Silveira da. A escolástica cristã medieval, Rio de Janeiro, 1999, p.27; HASKINS, Charles. A ascenção das universidades, São Paulo: Danúbio, 2015, p.901/1743

[11] CLARK, Kenneth. Civilização, São Paulo:Martins Fontes, 1980, p.64; FOSSIER, Robert. As pessoas da idade média, Rio de Janeiro: Vozes, 2018, p. 267

[12] NUNES, Ruy Afonso da Costa. História da educação na idade média, Campinas:Kirion, 2018, p.272

[13] BOUREAU, Alain. Fé. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude. Dicionário analítico do Ocidente medieval. v.I, São Paulo:Unesp, 2017, p. 467

[14] COSTA, José Silveira da. A escolástica cristã medieval, Rio de Janeiro, 1999, p.40

[15] MORTIMER, Ian. Séculos de transformações. Rio de Janeiro:DIFEL, 2018, p. 77

[16] BOWRA, Maurice. Grécia Clássica, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1969, p. 122



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