quinta-feira, 8 de julho de 2021

Platão e a invenção da escrita

 

Na antiguidade de tradição oral as possibilidades de difusão das técnicas eram maiores porque a tolerância ao erro era maior o que fazia os sacerdotes a confiarem a fundamentar seus conhecimentos para poder transmiti-los, ao passo que com a escrita, esta reprodução era mais mecânica, se limitava a copiar um texto sagrado. O mesmo ocorreu na Babilônia onde muitas tabuinhas lançam maldições aos copistas que modificarem qualquer parte dos textos antigos tal como se reflete no Apocalipse 22:19 “E, se alguém tirar quaisquer palavras do livro desta profecia, Deus tirará a sua parte do livro da vida, e da cidade santa, e das coisas que estão escritas neste livro”.[1] Este ceticismo com respeito a se transmitir a ciência pela forma escrita é refletida no Fedro de Platão em que o rei Tamuz se queixa com Thoth inventor da escrita de que sua invenção levaria ao desprezo da memória e do papel dos mestres: “Esta tua descoberta [a escrita] gerará esquecimento nas almas dos aprendizes, porque eles não utilizarão a sua memória, confiarão em caracteres escritos exteriores e não se lembrarão de si mesmos. O específico que descobriste não é um auxiliar da memória, mas sim da reminiscência, e tu dás aos teus discípulos não a verdade, mas apenas a aparência de verdade; eles serão ouvidores de muitas coisas e não terão aprendido nada; porque quando verem que podem aprender muitas coisas sem mestre, já se tomarão por sábios, e não serão mais que ignorantes, na sua maioria, e falsos sábios insuportáveis no comércio da vida”.[2] No Menon, Platão confirma “aprender é sempre, em verdade, uma reminiscência”.[3] A reminiscência como despertar intelectivo das ideias é diferente da memória que é a conservação de sensações. Em Fedon Platão explica a teoria da reminiscência  segundo a qual a alma, ao conhecer, recordar as ideias ou formas eternas que via antes de ficar presa no mundo terreno “o nosso aprender não é senão recordar, [logo] é preciso ter aprendido antes o que se recorda no presente. E isto não poderia ser, se a nossa alma não tivesse vivido em outro lugar, antes de haver entrado nesta forma de homem; pelo que, ainda por esta razão, torna-se evidente que a alma é algo imortal[4]. No Fedro Platão expõe que “A alma que jamais observou a verdade nunca atingirá a forma que é a nossa. E isso porque deve o homem compreender as coisas de acordo com o que chamamos de ideia, que vai da multiplicidade das sensações para a unidade, referida pela reflexão. A tal ato chama-se reminiscência das realidades que outrora a nossa alma viu, quando seguia no cortejo de um deus”.[5] No Teeteto Platão explica que “a memória é explicada como impressão deixada pelas sensações em uma espécie de bloco de cera introduzido na alma, de acordo com a qualidade da cera as impressões são mais distintas ou confusas, duráveis ou apagadas”. A escrita mata a verdadeira memória, aquela que permite através de uma disciplina exigente reencontrar o divino saber.

[1] ALVAREZ, Lopez. O enigma das pirâmides, São Paulo:Hemus, 1978, p.129

[2] ALVAREZ, Lopez. O enigma das pirâmides, São Paulo:Hemus, 1978, p.135; BOORSTIN, Daniel. Os descobridores, Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1989, p.441

[3] MONDOLFO, Rodolfo. O pensamento antigo v.I. São Paulo:Mestre Jou, 1964, p.212; VALLE, Lilian. Os enigmas da educação, Belo Horizonte: Autêntica, 2002, p. 83

[4] MONDOLFO, Rodolfo. O pensamento antigo v.I. São Paulo:Mestre Jou, 1964, p.256

[5] MASCHIO, E. Platão: a verdade está em outro lugar, São Paulo: Salvat, 2015, p.67


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