sexta-feira, 2 de julho de 2021

As teorias da coisificação/reificação do negro no Brasil colonial/imperial

 

Joaquim Nabuco argumentou com ironia que a escravidão brasileira era mais democrática que a dos Estados Unidos porque aqui todos os brasileiros podiam ter escravos inclusive os libertos e os próprios escravos. O artigo 4º da lei de 1871 permitia aos cativos o direito ao pecúlio, ou seja, tornava-se possível ao escravo acumular bens, podendo inclusive transmiti-los aos herdeiros. Por meio deste pecúlio o escravo poderia conquistar sua alforria, prática bastante generalizada ainda que fosse difícil acumular os recursos suficientes.[1] Ao analisar diversos litígios envolvendo escravos nas cortes da capital o jurista Perdigão Malheiro, na obra A Escravidão no Brasil escrita na metade do século XIX, conclui que o escravo estava “reduzido à condição de cousa, sujeito ao poder e domínio ou propriedade de um outro, é havido por morto, privado de todos os direitos, e não tem representação alguma”coisificação[2]. A Escola Sociológica Paulista da década de 1960, em autores como Florestan Fernandes, reforçou o entendimento de que havia um processo de "coisificação" subjetiva e/ou social dos escravos no Brasil. Em Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, o sociólogo paulista Fernando Henrique Cardoso retrata a escravidão como sendo um regime regido sobretudo pela violência e o antagonismo entre senhores e escravos: “A hipótese sobre a brutalidade corrente nas relações entre senhores e escravos encontra afirmação em inúmeros testemunhos e registros. Além disso, numa sociedade onde o regime patrimonialista de mando era pervertido por causa das condições históricas peculiares, a coerção necessária à manutenção do regime escravocrata teria de exercer-se dentro de padrões que supunham a violência como trato normal [...] A reificação do escravo produzia-se objetiva e subjetivamente. Por um lado, tornava-se uma peça cuja necessidade social era criada e regulada pelo mecanismo econômico de produção. Por outro lado, o escravo autorepresentava-se e era representado pelos homens livres como um ser incapaz de ação autônomica”. Esta perspectiva tem sido ponderada a partir dos anos 1980 por uma abordagem que leve em conta as formas, além da violência pura e simples, que permitiram que a sociedade escravista pudesse se manter por séculos, considerando as diferentes formas de negociação entre senhores e escravos. Busca-se uma aproximação de "um mundo criado pelos escravos na sua permanente negociação com os senhores" [3] Autores como Sidney Chalhoub, Beatriz Galloti Mamigonian, Manolo Florentino e Henrique Espada Lima Filho mostram que o escravo mesmo em um espaço rigidamente delimitado não pode ser visto como um ser inerte, pelo contrário, ele é capaz de engendrar estratégias, planos e ter uma interação com o meio, ou seja, a capacidade de se afirmar na sociedade de algum modo.[4] Para Jacob Gorender[5] “o escravo não é coisa, mas ser humano levemente limitado por um estatuto social inferior. Tem espaço para se manifestar como agente do ambiente em que convive com os senhores. Não havia razão para muita queixa do destino que lhe coube. Admirável mundo velho”.



[1] CARVALHO, José Murilo. A construção nacional 1830-1889, Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 56, 74

[2] ZUCHETTO, Tiago; RADUNZ, Roberto. A cosificação dos escravos e o caso dos pardos Barnabé e João, X Salão de ensino e de extensão, Unisc 2017. https://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/semic/article/view/17488

[3] FONSECA, Marcus Vinícius. Educação dos negros. Bragança Paulista: EDUSF, 2002

[4] FLORENTINO, Luiz Felipe. O escravo no Brasil enquanto figura inerte: uma análise sobre a postura dos cativos e os mecanismos de dominação. Temporalidades Revista de História, UFMG, janeiro 2016

[5] GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990



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