Joaquim Nabuco argumentou com ironia que a escravidão
brasileira era mais democrática que a dos Estados Unidos porque aqui todos os
brasileiros podiam ter escravos inclusive os libertos e os próprios escravos. O
artigo 4º da lei de 1871 permitia aos cativos o direito ao pecúlio, ou seja,
tornava-se possível ao escravo acumular bens, podendo inclusive transmiti-los
aos herdeiros. Por meio deste pecúlio o escravo poderia conquistar sua alforria,
prática bastante generalizada ainda que fosse difícil acumular os recursos
suficientes.[1] Ao analisar diversos litígios envolvendo escravos nas cortes da capital o
jurista Perdigão Malheiro, na obra A Escravidão no Brasil escrita na
metade do século XIX, conclui que o escravo estava “reduzido à condição de
cousa, sujeito ao poder e domínio ou propriedade de um outro, é havido por
morto, privado de todos os direitos, e não tem representação alguma”coisificação[2]. A
Escola Sociológica Paulista da década de 1960, em autores como Florestan
Fernandes, reforçou o entendimento de que havia um processo de
"coisificação" subjetiva e/ou social dos escravos no Brasil. Em Capitalismo
e escravidão no Brasil meridional, o sociólogo paulista Fernando Henrique
Cardoso retrata a escravidão como sendo um regime regido sobretudo pela violência
e o antagonismo entre senhores e escravos: “A hipótese sobre a brutalidade
corrente nas relações entre senhores e escravos encontra afirmação em inúmeros
testemunhos e registros. Além disso, numa sociedade onde o regime
patrimonialista de mando era pervertido por causa das condições históricas
peculiares, a coerção necessária à manutenção do regime escravocrata teria de
exercer-se dentro de padrões que supunham a violência como trato normal [...] A
reificação do escravo produzia-se objetiva e subjetivamente. Por um lado, tornava-se
uma peça cuja necessidade social era criada e regulada pelo mecanismo econômico
de produção. Por outro lado, o escravo autorepresentava-se e era representado
pelos homens livres como um ser incapaz de ação autônomica”. Esta perspectiva
tem sido ponderada a partir dos anos 1980 por uma abordagem que leve em conta
as formas, além da violência pura e simples, que permitiram que a sociedade
escravista pudesse se manter por séculos, considerando as diferentes formas de
negociação entre senhores e escravos. Busca-se uma aproximação de "um
mundo criado pelos escravos na sua permanente negociação com os senhores" [3] Autores
como Sidney Chalhoub, Beatriz Galloti Mamigonian, Manolo Florentino e Henrique Espada
Lima Filho mostram que o escravo mesmo em um espaço rigidamente delimitado não
pode ser visto como um ser inerte, pelo contrário, ele é capaz de engendrar
estratégias, planos e ter uma interação com o meio, ou seja, a capacidade de se
afirmar na sociedade de algum modo.[4] Para
Jacob Gorender[5] “o escravo não é coisa, mas ser humano levemente limitado por um estatuto social
inferior. Tem espaço para se manifestar como agente do ambiente em que convive
com os senhores. Não havia razão para muita queixa do destino que lhe coube.
Admirável mundo velho”.
[1] CARVALHO, José Murilo.
A construção nacional 1830-1889, Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 56, 74
[2] ZUCHETTO, Tiago;
RADUNZ, Roberto. A cosificação dos escravos e o caso dos pardos Barnabé e João,
X Salão de ensino e de extensão, Unisc 2017. https://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/semic/article/view/17488
[3] FONSECA, Marcus Vinícius. Educação dos negros. Bragança Paulista: EDUSF, 2002
[4] FLORENTINO, Luiz Felipe. O escravo no Brasil enquanto figura inerte: uma análise
sobre a postura dos cativos e os mecanismos de dominação. Temporalidades
Revista de História, UFMG, janeiro 2016
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