quinta-feira, 1 de julho de 2021

Escravos com escravos

 

João José Res mostra como o trabalho realizado pelos negros nagôs na Bahia no século XIX nos chamados “cantos de trabalho” nas ruas da cidade trabalhando como autônomos (artesãos, lavadeiras, alfaiates, vendedores ambulantes, aguadeiros, barbeiros, artistas, pedreiros, carpinteiros, carregadores de carga e de cadeira de arruar), como “escravos de ganho” constitui um locus importante para o redimensionamento das identidades africanas e criação de novos laços de solidariedade.[1] João Reis estima que um escravo de ganho, poderia poupar o suficiente para comprar sua alforria em nove anos de trabalho.[2] Katia Mattoso registra que na população livre de Salvador do século XIX de um grupo de 395 pessoas um total de 25 era formada  de ex escravos africanos, do quais apenas quatro não tinham seus próprios escravos, sendo que, a pesquisa mostra que todos os artesãos da amostra tinham escravos. Em Serro Frio em Minas Gerais um grupo de 286 proprietárias de escravos mostra que 244 já haviam sido escravas[3]. Carlos Eugênio Líbano Soares em pesquisa a registros de Salvador de 1700 a 1751 mostra que “um número espantoso de escravos possuía escravos”[4]. Jean Debret se refere a “vaidade de um escravo operário de um homem rico, mandando carregar, por negros de ganho, seu banco de carpinteiro ao se encaminhar para o trabalho”.[5] Henry Koster relata o caso do escravo Nicolau, um homem elegante que tinha dois escravos: “ele ofereceu seus dois escravos e troca da liberdade própria, mas lhe disseram que a propriedade não ficaria convenientemente administrada sem sua assistência. Assim, contra todas as inclinações pessoais, ele continua escravizado”. Segundo James Wetherell para estes pequenos proprietários a posse e o uso de escravos era o único meio de sua subsistência. Para João José Reis os negros na Bahia mantinham suas raízes africanas onde a escravidão era uma instituição presente.[6] Para José Reis na revolta dos malês a influência de movimentos revolucionários igualitários como os observados no Haiti era reduzida: “nenhuma utopia igualitária. Isso, sem dúvida decepciona quem espera encontrar heróis altruístas na história das rebeliões. Os malês eram homens de carne e osso, limitados pelas perspectivas de seu tempo e lugar. Afinal, qual escravo nunca desejou de ser senhor ?”.[7] Joaquim Nabuco argumentou com ironia que a escravidão brasileira era mais democrática que a dos Estados Unidos porque aqui todos os brasileiros podiam ter escravos inclusive os libertos e os próprios escravos. O artigo 4º da lei de 1871 permitia aos cativos o direito ao pecúlio, ou seja, tornava-se possível ao escravo acumular bens, podendo inclusive transmiti-los aos herdeiros. Por meio deste pecúlio o escravo poderia conquistar sua alforria, prática bastante generalizada ainda que fosse difícil acumular os recursos suficientes.[8]

[1] REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835, São Paulo: Cia das Letras, 2012, p. 351, 386

[2] REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835, São Paulo: Cia das Letras, 2012, p. 352

[3] NARLOCH, Leandro. Escravos. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2017. p.116

[4] NARLOCH, Leandro. Escravos. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2017. p.133

[5] NARLOCH, Leandro. Escravos. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2017. p.34

[6] REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835, São Paulo: Cia das Letras, 2012, p. 32, 310

[7] REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835, São Paulo: Cia das Letras, 2012, p. 268

[8] CARVALHO, José Murilo. A construção nacional 1830-1889, Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 56, 74



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