quinta-feira, 24 de junho de 2021

Romanização: uma luta contra a barbárie ?

 

Historiadores do início do século XX como Francis Haverfield em sua obra A romanização da Bretanha romana ou Camille Julian em História da Gália descrevem o avanço do império romano como uma vitória da civilização contra a barbárie.[1] Mary Beard, contudo, mostra como o poderio do império romano pode se estabelecer devido a flexibidade com que as novas áreas conquistadas eram integradas: “O que se pode afirmar com certeza é que os romanos praticamente não fizeram nenhuma tentativa, mesmo durante essa fase mais tranquila de controle imperial [Pax Romana], de impor suas normas culturais ou erradicar as tradições locais”[2], tendo como exceção os druidas na Britânica acusados de sacrifícios humanos e os cristãos. Em alguns casos as próprias áreas invadidas solicitavam a Roma a intervenção como é o caso da cidade de Teos que solicitou ao imperador romano que invadisse a cidade anexando-a ao Império de modo a dar maior tranquilidade a sua população contra o rei local[3]. Na Espanha, como exceção à regra geral, os romanos mantinham guarnições militares permanentes em Sagunto (Murviedro), gades (Cádis) e Tarraco (Tarragona) de modo a garantir o controle do comércio estabelecido desde a época dos cartagineses e das minas de prata e ferro.[4] Ainda assim o império romano se integrou às tradições locais ibéricas, de modo que Roma, que havia tomado a região aos cartigeneses africanos, foi sucedida pela ocupação árabe no século VIII tendo a Espanha resistido aos invasores, o que levou Oliveira Martins a concluir “a romanização transformou os espanhóis a ponto de já não reconhecerem nos novos invasores [árabes] os seus antigos companheiros de armas [cartagineses], nem os porventura seus irmãos de sangue: tal poder as ideias de uma civilização [romana] exercem  sobre a massa que informe das populações semi bárbaras, que chegam a obliterar nela as simpatias vinculadas a uma descendência comum!”.[5] Os inimigos de Roma contudo contestam o projeto imperial romano pacífico. Segundo Tácito, referindo-se ao poder romano na Britânia: “eles criam a desolação e chamam isso de paz” “solitudinem faciunt, pacem appellant”[6]. Mary Beard observa que os povos conquistados eram tão militaristas quanto Roma.[7] Tito Lívio destaca que as boas relações com as províncias invadidas foram a chave para a dinâmica da expansão romana em seus primórdios. Tácito observa que a maneira como muitas províncias se aculturavam e adotavam as tradições romanas acaba servidno aos interesses de Roma: “Eles, em sua ignorância, davam a isso o nome de civilização, mas na realidade era parte de sua escravização” (humanitas vocabatur, cum pars servitutis esset).[8] Em muitas províncias eram estendidos os direitos de cidadania romana aos nascidos na região, incluindo o direito de voto: “isso preparou o terreno para um modelo de cidadania e de pertencimento que teve enorme importância para as ideias romanas de governo, direitos políticos e etnicidade e nacionalidade. Esse modelo foi logo estendido ao exterior e acabou sustentando o Império Romano”.[9] O imperador Septímio Severo tinha origem no território romano na África. Trajano e Adriano eram da província romana da Espanha.[10] Esse processo culminou em 212 quando Caracala transformou todo habitante livre do Império em cidadão romano, de modo que mais de 30 milhões de habitantes das províncias tornaram-se legalmente cidadãos romanos.[11]

[1] GUARINELLO, Norberto Luiz. História Antiga. São Paulo: Contexto, 2020, p.39

[2] BEARD, Mary. SPQR: uma história da Roma Antiga, São Paulo: Planeta, 2010, p. 481

[3] BEARD, Mary. SPQR: uma história da Roma Antiga, São Paulo: Planeta, 2010, p. 192

[4] MARTINS, Oliveira. História da civilização ibérica, Lisboa: Guimarães Editores, 1994, p.62

[5] MARTINS, Oliveira. História da civilização ibérica, Lisboa: Guimarães Editores, 1994, p.114

[6] BEARD, Mary. SPQR: uma história da Roma Antiga, São Paulo: Planeta, 2010, p. 504

[7] BEARD, Mary. SPQR: uma história da Roma Antiga, São Paulo: Planeta, 2010, p. 20

[8] BEARD, Mary. SPQR: uma história da Roma Antiga, São Paulo: Planeta, 2010, p. 486

[9] BEARD, Mary. SPQR: uma história da Roma Antiga, São Paulo: Planeta, 2010, p. 163

[10] BEARD, Mary. SPQR: uma história da Roma Antiga, São Paulo: Planeta, 2010, p. 69, 515

[11] BEARD, Mary. SPQR: uma história da Roma Antiga, São Paulo: Planeta, 2010, p. 68



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