sábado, 19 de junho de 2021

A tecnologia produzindo novas formas sociais: o caso dos moinhos medievais

 

O moinho d’agua torna-se nos séculos X e XI parte integrante da paisagem rural ocidental.[1] Jêrome Baschet observa que a difusão de moinhos d’água ocorreu durante a alta idade média (séculos VIII ao X) paradoxalmente um período em que as cidades declinam e a ruralização é seu traço mais marcante[2]. Marc Bloch mostra que entre os deveres do camponês estava a obrigação de moerem os grãos colhidos no moinho do senhor feudal, cozerem o pão em seu forno, fazerem o vinho em seu lagar. Tais obrigações eram conhecidas vulgarmente como “banalidades”.[3] Perry Anderson observa que o advento da azenha levou ao monopólio de exploração senhorial de modo que os camponeses eram forçados a levar seu grão para ser moído na azenha do senhor. Frances Gies mostra que os moinhos feito em madeira estavam sujeitos a constantes quebras, ao passo que os moinhos de engrenagens em ferro eram um luxo a que poucos tinham acesso.[4] A tecnologia dos moinhos modificou a ordem social medieval destacando-se a posição dos donos de moinhos que alugavam o equipamento para os camponeses moerem sua produção, muito embora haja evidências de proprietários independentes de moinhos entre os vilões que escapavam ao controle do senhor feudal[5]. As banalidades eram tributos da época feudal pagos pelo servo, como um percentual da produção, por exemplo por uma multura, ou seja, um a cada treze partes, para a utilização de bens de propriedade do senhor feudal, pela utilização de equipamentos e instalações do senhorio (celeiros, fornos, moinhos, pontes, etc), pois o senhor feudal detinha todos estes equipamentos. Os moinhos propriamente ditos eram chamados de banais. Em Portugal o foral de Anobra (1275) determina que pela utilização dos moinhos se pague 1/4 ao rei. Segundo Marx no volume III do Capital expõe que o senhor feudal era “o dono e senhor do processo de produção e de todo o sistema de vida social”.[6] Em 1274 o abade John no mosteiro de Saint Albans em Cirencester ao norte de Londres obrigava os moradores de Saint Albans a moer seu trigo e pisoar seus panos nos moinhos do mosteiro. Tal monopólio era motivo de tensões na comunidade. Em 1331 o abade Ricardo II de Wallingford deu ordem de busca nas casas para que fossem confiscadas todas as mós usadas nos moinhos à mão encontradas mandando pavimentar o claustro da abadia com as mós dos moinhos[7] “para humilhar a gente comum”. Uma revolta em 1381 levou a população ao mosteiro para reaver as mós apreendidas, vingando-se da humilhação de cinquenta anos antes, distribuindo entre si os fragmentos das pedras como “símbolos de solidariedade” segundo o cronista Thomas Walsingham: “Entraram no claustro, arrancaram as pedras mós encravadas no pavimento da residência abacial e quebraram-nas. Depois distribuíram os pedaços como se fossem hóstias sagradas na igreja paroquial”[8]. Usher aponta que “alguns senhores feudais reivindicavam jurisdição exclusiva sobre a moagem com o objetivo de limitar o número de moinhos bem como obrigar os moradores a moer nos moinhos dos senhores. Não foram completamente bem sucedidos em ambas as tentativas [...] na prática ficou difícil obrigar os moradores a moer no moinho dos respectivos senhores”[9] Marc Bloch observa que esta foi uma vitória efêmera pois logo após a carta de Saint Alban foi anulada por estatuto real. Este é apenas um exemplo da resistência do antigo sistema de moagem à mão contra os moinhos d’água senhoriais, ou seja, contra a adoção da máquina hidráulica[10]. O moinho d’ água inventado no século I a.c. tornou-se, contudo, comum somente após a queda do Império romano[11]. Os senhores feudais impunham tais cobranças pelo uso de seus moinhos com base no poder de mando (do germânico ban) a eles atribuído pelo rei. Sobre este poder se fundamentaram os monopólios ditos “banalidades” com os quais eram cobrados pesados direitos de moagem. Nuno Carvalho aponta que os conflitos em mosteiros foram melhor documentados do que os existentes nas terras dos senhores feudais devido a prática dos monges copistas e ao fato de que muitos destes senhores feudais eram analfabetos, não deixando qualquer registro histórico de seus conflitos, no entanto, o sentido excludente no uso dos moinhos encontra paralelo na exclusividade temporária de certas técnicas. Robert Fossier argumenta que o uso do moinho banal não era central na chamada sociedade feudal uma vez que a moagem em casa continuou durante todo o período medieval[12], de modo que não procede a análise de Marx ao associar a dominação de um mestre sobre seus homens à construção de seu moinho, ou seja, embora o moinho tenha ajudado reforçar o controle do senhor sobre a economia camponesa, não foi este o fator decisivo. Para Robert Fossier o uso de termos como “sociedade feudal”  e “feudalismo” constitui uma simplificação grosseira: “toda essa gesticulação feudal diz respeito a uma pequena parte da sociedade; o homem comum não entende isso, e pouco se preocupa com isso”.[13]

[1] BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América, São Paulo:Globo, 2006, p.106; HODGETT, Gerald. História social e econômica da Idade Média, Rio de Janeiro:Zahar, 1975, p.222

[2] BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América, São Paulo:Globo, 2006, p.55, 57

[3] BLOCH, Marc. A sociedade feudal, Lisboa:Edições 70, 1982, p.281

[4] GIES, Frances & Joseph. Cathedral, forge and waterwheel, New York: Harper Collins, 1994, p. 116

[5] GIES, Frances & Joseph. Cathedral, forge and waterwheel, New York: Harper Collins, 1994, p. 116

[6] ANDERSON, Perry. Passagens da antiguidade ao feudalismo, Porto: Afrontamento, 1982, p. 207

[7] LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Rio de Janeiro:Vozes, 2016, p. 293, 313; USHER, Abbott. Uma história das invenções mecânicas, Campinas:Papirus, 1993, p. 243; CAMP, L. Sprague de. The ancient engineers, New York: Ballantine Books, 1963, p. 368

[8] GIMPEL, Jean. A revolução industrial da Idade Média, Rio de Janeiro:Zahar, 1977, p.21, 131, 188

[9] CARVALHO, Nuno. A estrutura dos sistemas de patentes e de marcas: passado, presente e futuro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 162

[10] BLOCH, Marc. Advento e conquistas do moinho d’água. In: GAMA, Ruy. História da técnica e da tecnologia, São Paulo:Edusp. 1985,p.77

[11] WHITE, Lynn. Tecnologia e invenções na Idade Média. In: GAMA, Ruy. História da técnica e da tecnologia, São Paulo:Edusp, 1985, p. 98

[12] FOSSIER, Robert. O trabalho na idade média. Rio de Janeiro: Vozes, 2018, p. 156

[13] FOSSIER, Robert. As pessoas da idade média, Rio de Janeiro: Vozes, 2018, p. 226







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