domingo, 23 de maio de 2021

Penitencias coletivas medievais

 

Georges Duby observa que o período no decorrer do século XII mostra marcas evidentes da conquista de uma autonomia pessoal, momento em que se observa um crescimento agrícola a a reanimação dos mercados e aldeias: “tal mobilização das iniciativas e das riquezas suscitou a valorização progressiva da pessoa [...] o que reivindica uma identidade no seio do grupo, o direito de deter um segredo, distinto do segredo coletivo”.[1] A confissão auricular já difundida nas comunidades monásticas europeias do século VII[2] é outra marca desta sociedade que se volta para o indivíduo que havia de modificar o sentido da palavra privado.[3] O bispo Ambrósio (340-397) dizia que “pecar é comum a todos os homens, mas arrepender-se é próprio dos santos” “culpam incidisse, naturae est, diluísse, virtuitis”[4] e se refere a prática da penitência: “Pareceria impossível que os pecados devam ser perdoar através penitência; Cristo outorgou este (poder) aos apóstolos e dos apóstolos foi transmitido ao ofício dos sacerdotes” (De poenitentia II, ii, 12). Em agosto de 390 o imperador Teodósio, que 380 promulgou o edito de Tessalônica no qual reconheceu o cristianismo como religião oficial do Império, ordenou o massacre da população em Tessalônica, ao executar cerca de sete mil pessoas, por motivação fútil. O bispo de Milão Ambrósio intimou o imperador que se submeteu na noite de Natal do mesmo ano de 390 ao arrependimento público junto com os demais penitentes vestido com os mesmos trajes, numa mostra do costume de penitências coletivas públicas.[5] Segundo o arcebispo de Alexandria, Atanásio (296-373): “Assim como o homem batizado pelo sacerdote é iluminado pela Graça do Espírito Santo, assim também aquele que em penitência confessa seus pecados, recebe através do sacerdote o perdão em virtude da graça de Cristo” (Fragmentum contra Novatum, PG XXVI, 1315). O arcebispo de Constantnopla, João Crisóstomo  (347-407): “Os sacerdotes receberam um poder que Deus não deu nem aos anjos nem aos arcanjos. Foi dito a eles: 'Tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares, será desligado. Governantes temporais têm realmente o poder de ligação, mas eles só podem ligar o corpo. Sacerdotes, em contraste, podem ligar com um vínculo que pertence à própria alma e transcende os próprios céus. Será que [Deus] não lhes dar todos os poderes do céu? ‘De quem você deve perdoar pecados’, diz ele, ‘são-lhes perdoados; cujos pecados você retiver, são retidos’. Que maior poder há do que isso? O Pai entregou todo o julgamento ao Filho. E agora eu vejo o Filho colocando todo esse poder nas mãos dos homens [Mat. 10, 40, João 20, 21-23]. Eles são criados para esta dignidade como se eles já estivessem reunidos para o céu” (O Sacerdócio 3, 5)[6]. O primeiro testemunho de que estava em vigor a administração privada do sacramento da Penitência, se deve ao Concilio III de Toledo (Espanha), em 589 que a denunciava como abuso e exigia a observância da tradição antiga de confissão pública[7]. Em 1215 no IV Concílio de Latrão em Roma havia sido instituída a obrigatoriedade da confissão anual[8], que já era uma prática na Igreja. Segundo o canon 21 do Concílio: “Todos os fiéis de ambos os sexos devem, depois de terem atingido a idade do discernimento, fielmente confessar todos os seus pecados pelo menos uma vez por ano ao seu próprio (pároco) sacerdote e realizar no melhor de sua capacidade a penitência imposta”.

[1] DUBY, Georges. A emergência do indivíduo. A solidão nos séculos XI-XIII. In: ARIÉS, Philippe; DUBY, Georges. História da vida privada: da Europa Feudal à Renascença, v.2, São Paulo:Cia das Letras, 1990, p.505, 506, 508

[2] CASAGRANDE, Carla; VECCHIO, Silvana. Pecado. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude. Dicionário analítico do Ocidente medieval. v.II, São Paulo:Unesp, 2017, p. 389

[3] DUBY, Georges. A emergência do indivíduo. A solidão nos séculos XI-XIII. In: ARIÉS, Philippe; DUBY, Georges. História da vida privada: da Europa Feudal à Renascença, v.2, São Paulo:Cia das Letras, 1990, p.525; LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude. Dicionário analítico do Ocidente medieval. v.I, São Paulo:Unesp, 2017, p. 37

[4] Apologia David ad Theodosium Augustum II, 5.6 In: BETTENCOURT, Rstevão. Diálogo ecumênico, Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1984, p. 129

[5] ROPS, Daniel. A igreja dos mártires e dos apóstolos, São Paulo: Quadrante, 1988, p. 569

[6] https://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/patristica/estudos-patristicos/578-os-pais-da-igreja-e-o-sacramento-da-penitencia-confissao-auricular

[7] http://www.pr.gonet.biz/kb_read.php?num=2341&pref=pdf&head=1

[8] FOSSIER, Robert. As pessoas da idade média, Rio de Janeiro: Vozes, 2018, p. 297; GOFF, Jacques. A bolsa e a vida, São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 12


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