quarta-feira, 7 de abril de 2021

A leitura silenciosa

 

Aaron Gourevitch observa que no ambiente medieval, os valores cristãos tal como pregado pela Igreja não fomentavam a individualidade, pelo contrário: “a exigência religiosa da humildade, arrependimento, expiação, a condenação da originalidade individual na qual se via uma fonte de orgulho, tantos fatores incitavam o indivíduo a se exprimir ou sob a forma paradoxal da renúncia de si ou da automortificação [...] mesmo quando uma personalidade não é esmagada pelo peso da religião e do sentimento de culpa que dele decorre, tais conflitos impedem-no de se afirmar, a não ser sob formas que nos parecem pertencer à psicopatologia”.[1] Alberto Mangel observa que até o século X a regra era leitura em voz alta. Na Grécia Heródoto lia suas obras em público nos festivais olímpicos. [2] Em Roma no século V Apolinário Sidônio lia suas poesias em público. No século IV Agostinho em Confissões relata com certa estranheza a forma de ler silenciosa do bispo Ambrósio. Para Agostinho ler era uma habilidade oral. O hebreu e o aramaico usam a mesma palavra para o ato de ler e o ato de falar. Entre os árabes a regra tal como descrita por Abu Hamid al Ghazali no século XII era de ler o Corão  “alto o suficiente para que o leitor o escutasse, porque ler significa distinguir entre os sons”. A leitura silenciosa, introspectiva, que permite uma maior reflexão do texto lido, se consolida nos mosteiros medievais[3] na medida em que o conceito de individualidade se dissemina na cultura. Os primeiros regulamentos recomendam aos escribas manterem o silêncio no scriptorium datam do século IX.[4] Georges Duby destaca que os laicos no século XV oram como outrora somente os monges oravam, como se observa no livro de orações Très Riches Heures encontrado na biblioteca de Carlos V, através de uma leitura “que se torna silenciosa, pessoal, como a oração”.[5] Robert Fossier, contudo, observa que as ricas iluminuras como as Très riches heures de Jean duc de Berry de 1410 estavam longe do alcance de um público mas amplo sendo objeto restrito a colecionadores.[6]

[1] GOUREVITCH, Aaron. Indivíduo. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude. Dicionário analítico do Ocidente medieval. v.I, São Paulo:Unesp, 2017, p. 700

[2] MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura, São Paulo: Cia das Letras, 1997, p. 283

[3] COSTA, Ricardo da; VENTORIM, Eliane; FILHO, Orlando Paes. Monges medievais, São Paulo:Planeta, 2004, p.25

[4] MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura, São Paulo: Cia das Letras, 1997, p. 58, 67

[5] DUBY, Georges, A Europa na Idade Média, São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 124

[6] FOSSIER, Robert. As pessoas da idade média, Rio de Janeiro: Vozes, 2018, p. 257



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