terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

O engenho de açúcar como atividade pré industrial

 

Stuart Schwartz mostra que não se pode entender a sociedade colonial do açúcar como formada apenas por escravos e senhores de engenho. O processo de produção do açúcar envolvia diferentes etapas, o que remete a um processo industrial, e como tal fundamenta uma complexa estratificação social. Mesmo entre os escravos nem todos trabalhavam nas tarefas mais pesada que envolviam o corte da cana. A economia do açúcar é uma síntese da sociedade colonial. A atividade de purga do açúcar exigia outra habilidade do escravo e não propriamente o trabalho braçal. Mesmo a estrutura deste processo econômico organiza um meio social complexo que incorpora trabalhadores livres como carpinteiros encarregados para fazer a manutenção dos moinhos dos engenhos [1]. Para Gabriel Beltrão [2]: “Enquanto na Europa o surgimento da manufatura é resultado do processo de separação dos trabalhadores dos seus meios de produção, opondo-se-lhes com o capital, na manufatura açucareira americana a relação de produção constituída tem na coerção extra econômica o fundamento do processo produtivo”. Nos engenhos de açúcar havia um elevado grau de divisão do trabalho e consequentemente de especialização dos trabalhadores. A introdução do engenho de palitos ou engenho de entrosas a partir de 1610 permitiu uma maior produtividade pois suprimiu-se a necessidade de mão de obra para conduzir o bagaço de uma máquina à outra bem como o operador da prensa que deixou de ser necessária. Enquanto no processo antigo exigia cinco trabalhadores no novo processo bastavam três trabalhadores. O primeiro escravo deixa de deslocar e se torna fixo com a tarefa de alimentar a moendas com roletes e bagaço. Aquele que põe o rolete entre os rolos é o mesmo que se deslocar para trás e a fim de trazer o bagaço para a frente para que possa ser reintroduzido e extrair toda a cana. Se por um lado a inovação tecnológico aumento a quantidade de caldo de cana produzido, por outro lado não houve qualquer aperfeiçoamento tecnológico nas etapas seguintes de cozimento do caldo e purgação do açúcar, o que exigiu aperfeiçoamentos também nesta etapa com o aumento do número de caldeiras feitas de cobre, ou seja, soluções quantitativas, mas que mantinham a produtividade desta etapa.  Será somente no século XIX que as máquinas industriais chegam à cozinha do engenho. Segundo Ruy Gama: “o gargalo da sequência de atividades da manufatura estava na cozinha”.[3]

Segundo Antonil a casa das fornalhas era bastante insalubre e lembrava o “fumo perpétuo e via imagem dos vulcões Vesúvio e Etna e quase do Purgatório ou do Inferno” [4] e muitas vezes reservados aos escravos portadores de doenças sexuais pois acreditava-se nas propriedades terapêuticas do calor excessivo.[5] Segundo Manuel Diegues: “o mestre de açúcar é o técnico que supervisiona toda a atividade do preparo do açúcar no engenho. Outros técnicos em especializações particulares, ajudam o mestre do açúcar em funções específicas: o caldeireiro que baldeia o caldo para as tochas e vai também limpando, com a espanadeira a espuma fervente nas caldeiras, ajudando o caldo; o tacheiro que se incumbe de acompanhar o desenvolvimento do caldo nas tachas e o purgador que é o químico no preparo da cristalização do açúcar nas formas”.[6] Mary del Priore mostra o mestre do açúcar era um negro livre encarregado de manipular a caldeira mantendo a temperatura adequada, sendo um trabalhador valorizado na economia colonial e que recebia um salário por safra. Em Campos em 1790 recebia um mínimo de 600 e 800 reis por dia.[7] Segundo Antonil “a quem faz o açúcar, com  razão se dá o nome de mestre, porque o seu obrar pede inteligência, atenção e experiência, e esta, não basta que seja qualquer, mas é necessária a experiência local, a saber, do lugar e qualidade da cana, aonde se planta e se móis. Porque ainda que a cana não seja qual deva ser, muito pode ajudar a arte, no que faltou a natureza. E, pelo contrário, pouco importa que a cana seja boa, se o fruto dela e o trabalho de tanto custo se botar a perder por descuido, com não pequeno encargo de consciência para quem recebe avantajado estipêndio”.[8] Para Ruy Gama o empirismo de Antonil é oriundo do pensamento renascentista italiano.[9] Gabriel Magalhães destaca que o engenho não extinguiu, portanto, o papel do artesão na figura do mestre de açúcar, ao contrário, intensificou a sua importância.



[1]SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835, São Paulo:Cia das Letras, 1988 in: PIMENTA, Garrido. A economia e a sociedade do açúcar (Aula 6, parte 3), 2014 https://www.youtube.com/watch?v=ISRcTJIoflU&t=37s

[2] BELTRÃO, Gabriel Magalhães. A economia colonial e a particularidade da manufatura açucareira, Mestrado em Sociologia, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2013

[3] GAMA, Ruy, Engenho e tecnologia , São Paulo: Duas Cidades, 1983, p.339

[4]GOMES, Laurentino. Escravidão, v.I, São Paulo: Globo, 2019. p.332; MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, v.I (1550-1794), São Paulo:USP, 1976, p. 240

[5] CAMPOS, Raymundo. Grandezas do Brasil no tempo de Antonil, São Paulo:Atual Editora, 1996, p. 21

[6] DIEGUES, Manuel. População e açúcar no nordeste do Brasil, Comissão Nacional de Alimentação, 1954, p.147

[7] PRIORE, Mary del. Histórias da gente brasileira, v.1 Colônia.Rio de Janeiro:Leya, 2016, p. 76

[8] BELTRÃO, Gabriel Magalhães. A economia colonial e a particularidade da manufatura açucareira, Mestrado em Sociologia, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2013

[9] GAMA, Ruy. Engenho e tecnologia, São Paulo: Duas Cidades, 1983, p.341



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