quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Modo asiático de produção no Egito antigo

 

As cheias regulares do Nilo permitiam uma irrigação natural que ampliava a área de cultivo. Com uso de uma irrigação ordenada aplicada a um húmus fecundo deixado pelas cheias do Nilo o Egito tornou-se no celeiro da Antiguidade com produção abundante de trigo, cevada e sorgo [1]. Heródoto narra que “tão logo o rio se eleva por vontade própria, rega os campos de cultiva e se retira, cada um deles semeia seu campo e conduz até ele seus porcos para que com suas garras introduzam as sementes. Depois não precisam fazer outra coisa a não ser esperar a colheita”.[2] Com o declínio do nível do Nilo as terras seriam enriquecidas com o lodo encharcando profundamente a terra. Em 1957 Wittfogel defendeu a tese conhecida como “tese hidráulica” de a irrigação artificial introduzida por volta de 3000 a.c. foi elemento central para busca de um poder centralizado e para integração dos reinos do Alto e Baixo Egito pelo rei Menes, pois somente um poder central conseguiria empreender a tarefa de irrigação de modo a otimizar os rendimentos de uma economia predominantemente agrícola [3]. Em meados do Antigo Império no Alto Egito (sul) haviam vinte e duas unidades administrativas conhecidas como nomos. Nos reinos do Baixo Egito (norte) haviam vinte nomos.[4] Em Medinet et Faium, a chamada “Veneza do Egito” há um antiquíssimo curso de água artificial de cerca de 300 quilômetros conhecido como “Bahr Yusuf” ou “Canal de José” que teria sido construído pelo José bíblico no tempo do faraó Amenemhat III (1860-1814 a.c.).[5] O papiro de Wilbour da XX Dinastia mostra que sob Ramsés V a semeadura da maior parte da superfície cultivada era controlada administrativamente pelo governo central,[6] no entanto esta fonte é mais tardia. A unificação conseguida em torno de um projeto tecnológico de irrigação desenvolveu tanto no Egito como na Mesopotâmia o que Mary Austin denomina “coletivismo da utilidade indivisível”.[7] Jean Vernant observa que a tese não se aplica na Grécia [8]. Esta tese desenvolve o conceito de “modo de produção asiático” exposto por Marx, segundo o qual, muitas sociedades, principalmente asiáticas, dependiam largamente da construção de obras de irrigação em larga escala, organizada sob o controle de um poder central despótico. No Grundisse (Fundamento da crítica da economia política) publicado na década de 1940, Marx expões a “forma asiática” de propriedade comum terra que une a agricultura com o artesanato em comunidades autárquicas.[9] Engels no Anti Duhring de 1878 ele reafirma a necessidade de organização de obras de irrigação como elemento que explica o surgimento de Estados despóticos. Karl Wittfogel, ex membro do partido comunista alemão, publicou em 1957 “Despotismo oriental: um estudo comparativo do poder total” em que defende a tese de os poderosos estados da antiguidade foram montados em função de grandes obras hidráulicas o que levou a um despotismo oriental.[10] Esta tese foi contestada posteriormente a partir dos estudos arqueológicos que detectaram a ausência de indícios de grandes obras de irrigação no III e II milênio a. C. Os soberanos da XII Dinastia (1990 a.c. a 1780 a.c.) concluíram a canalização da primeira catarata começada durante a VI Dinastia.[11] Paradoxalmente um dos principais seguidores de Wittfogel, A. Palerm viria a empreender pesquisas arqueológicas no México concluindo o contrário do pensava comprovar inicialmente, ou seja, na verdade o controle dos sistemas de irrigação competiam às comunidades locais e somente muito tardiamente o Estado viria a exercer esta função.[12]. Karl Butzer mostra que no Egito antigo, da mesma forma, o controle da irrigação era local e somente tardiamente o Estado se envolve diretamente em grandes obras no setor, de modo que, não se sustenta a chamada “hipótese causal hidráulica”.[13}


[1] MATTOSO, Antonio. História da civilização, Lisboa:Ed Sá da Costa, 1952, p.86

[2] STROUHAL, Eugen. A vida no antigo Egito. Barcelona:Folio, 2007, p. 95-96

[3] HODGES, Henry. Technology in the ancient world, New York: Barnes & Noble Books, 1970, p. 91

[4] SHAFER, Byron. As religiões no Antigo Egito, São Paulo: Nova Alexandria, 2002, p. 54

[5] KELLER, Werner, E a Bíblia tinha razão, São Paulo: Melhoramentos, 1964, p.92

[6]CARDOSO, Ciro Flamarion. O Egito antigo. Coleção Tudo é história, n° 36, São Paulo:Brasiliense, 1986, p.37; CAMP, L. Sprague de. The ancient engineers, New York: Ballantine Books, 1963, p. 13

[7] MUMFORD, Lewis. A cidade na história, São Paulo:Martins Fontes, 1982, p. 149

[8] VERNANT, Jean Pierre. As origens do pensamento grego, Rio de Janeiro:Difel, 2002, p. 25

[9] CARDOSO, Ciro Flamarion. Sociedade do Antigo Oriente Próximo, São Paulo; Ática, 1991, p. 13

[10] VAINFAS, Ronaldo; FARIA, Sheila; FERREIRA, Jorge; SANTOS, Georgina. História Volume único, São Paulo:Saraiva, 2010, p.28

[11] GRIMBERG, Carl. História Universal: a aurora da civilização, v.1, Chile:Publicações Europa, 1989, p. 49

[12] CARDOSO, Ciro Flamarion. Sociedade do Antigo Oriente Próximo, São Paulo; Ática, 1991, p. 20

[13] CARDOSO, Ciro Flamarion. Sociedade do Antigo Oriente Próximo, São Paulo; Ática, 1991, p. 61



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