Para o antropólogo Hermann
Klaatsch: “no devoramento do inimigo
abatido representa o principal papel a ideia da transferência da força. Se não
se pode comer o corpo todo, come-se pelo menos o cérebro ou a gordura em volta
dos rins, que, curiosamente, é considerada a sede de faculdades especiais”.[1] Segundo Walter Hirsch: “a carne humana só foi consumida por povos
que acreditavam poder absorver as forças ou qualidades do devorado” e assim
os povos do paleolítico ao neolítico eram canibais. Para René Girard: “todo sacrifício humano e animal deve ser
interpretado à luz do desejo mimético, verdadeiro canibalismo do espírito
humano que sempre acaba tendo como objeto a violência outra, a violência do
outro. O desejo mimético exacerbado deseja ao mesmo tempo destruir e absorver a
violência encarnada do modelo obstáculo, sempre assimilada ao ser e à divindade”.[2] Nas Américas Antonio
Pigafetta refere-se a antropofagia dos tupinambás: ‘tal hábito só existe em tempos de guerra. Finda a batalha carregam os
inimigos mortos e consomem sua carne” [3]. O livro de Theodore de
Bry, Americae tertia pars Brasiliae
historian de 1592 menciona os relatos de Hans Staden e Jean Léry sobre a
prática de canibalismo no Brasil. [4] Na descrição de Carlos
Fausto: “Nada deveria ser perdido, tudo precisava ser consumido e todos
deviam fazê-lo: as mães besuntavam seus seios de sangue, para que seus bebés
também pudessem provar do inimigo. Se a comida era pouca e muitos os convivas,
desfrutava-se do caldo de pés e mãos cozidas; se, ao contrário, o repasto era
farto, os hóspedes levavam consigo partes moqueadas. O único que não comia era
o matador, que iniciava um período de resguardo, no qual deveria se abster de
uma série de alimentos e atividades [...] O homicídio em praça pública, por
outro lado, não conferia "honra" apenas ao executor, mas também à
vítima, que deveria mostrar coragem e, assim, deixar "memória de si"”.
Em carta de Anchieta de 1563 ao lamentar-se ao geral Diogo Lainez: "Esta
gente é tão carniceira, que parece impossível que possam viver sem matar”.[5] Não se pode, a rigor, tratar da prática ritual dos tupinambás como canibalismo,
pois não se tratava de comer carne humana para matar a forme, mas como parte de
um ritual elaborado que misturava bravura e respeito ao inimigo. Segundo José
de Alencar era “Os restos do inimigo tornavam-se pois como uma hóstia
sagrada que fortalecia os guerreiros; pois às mulheres e aos mancebos cabia
apenas uma tênue porção. Não era a vingança; mas uma espécie de comunhão da
carne; pela qual se operava a transfusão do heroísmo”.[6] O modernismo de 1922 recuperou este sentido como metáfora na qual se buscava
uma identidade para cultura nacional a partir da absorção de elementos da
cultura estrangeira, em um resultado genuinamente brasileiro. Nas palavras de
Oswald de Andrade: “Antropofagia. Absorção do inimigo sacro para
transformá-lo em totem”. Para alguns religiosos europeus os índios ou eram
vítimas de forças malignas (no caso das tribos amigas) ou eram cúmplices destas
mesmas forças (no caso das tribos hostis, ao qual segundo Anchieta: “para
esta espécie de gente não há melhor maneira de pregar do que com a espada e a
vara de ferro”) os dois casos poderiam ser explicados, segundo Pero de
Magalhães Gandavo [7],
pelo fato de os índios não eram capazes de pronunciar as letras F, L e R
correspondentes às palavras fé, lei e rei.[8] Gabriel Soares de Souza em
Tratado descritivo do Brasil de 1587 reforça esta visão de mundo como uma
gramática simbólica, que só seria contestado com Domingos do Loreto Couto em Desagravos
do Brasil e Glórias de Pernambuco de 1757 e Gonçalves Dias em O Brasil e a
Oceania de 1849.
[1]WENDT, Herbert. A
procura de Adão. São Paulo:Melhoramentos, 1965, p. 277
[2]RIGHI, Mauricio. Pré
História & História, São Paulo:É Realizações, 2017, p. 283
[3]WENDT, Herbert. Tudo começou
em Babel, São Paulo:Difusão, 1962, p. 204, 209
[4]LAGO, Pedro Correa.
Brasiliana IHGB 175 anos, Rio de Janeiro:Capivara, 2014, p. 126
[5]CUNHA, Manuela Carneiro. História dos índios no Brasil, São Paulo:Cia das Letras,
1992, p. 392
[6]ALENCAR, José de. Ubirajara. Rio de Janeiro: Garnier, 1926.
http://m.revistaacademicaonline.com/products/a-verdade-mitica-e-a-fala-poetica-em-ubirajara-de-jose-de-alencar/
[7]MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, v.I (1550-1794), São
Paulo: USP, 1976, p. 57
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