quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

A catástrofe demográfica indígena com a chegada dos portugueses

 

Manuela Carneiro da Cunha [1] mostra que não havia um projeto de extermínio por parte da Coroa portuguesa: “Povos e povos indígenas desapareceram da face da terra como consequência do que hoje se chama, num eufemismo envergonhado "o encontro" de sociedades do Antigo e do Novo Mundo. Esse morticínio nunca visto foi fruto de um processo complexo cujos agentes foram homens e micro-organismos, mas cujos motores últimos poderiam ser reduzidos a dois: ganância e ambição, formas culturais da expansão do que se com convencionou chamar o capitalismo mercantil. Motivos mesquinhos e não uma deliberada política de extermínio conseguiram esse resultado espantoso de reduzir uma população que estava na casa dos milhões em 1500 aos parcos 200 mil índios que hoje habitam o Brasil. As epidemias são normalmente tidas como o principal agente da depopulação indígena (ver, por exempla Borah 1964)”. Luiz Felipe de Alencastro se refere a um “choque microbiológico” que tanto atinge índios como europeus: “tudo indica que a sífilis se disseminou mundo afora a partir da América Central [...] Fenômeno parecido deu-se com a bouba, enfermidade transmitida pelo treponema pertenue, de sintomas semelhantes aos da sífilis e com ela frequentemente confundida”. Com a descoberta das Américas Luiz Felipe de Alencastro se refere a “unificação microbiana do mundo”.[2] Segundo Manuela Carneiro: “Particularmente nefasta foi a política de concentração da população praticada por missionários e pelos órgãos oficiais, pois a alta densidade dos aldeamentos favoreceu as epidemias, sem no entanto garantir o aprovisionamento. O sarampo e a varíola (que, entre 1562 e 1564, assolaram as aldeias da Bahia fizeram os índios morrerem tanto das doenças quanto de fome)”. André Thevet quando da invasão dos franceses no Rio de Janeiro se refere a uma mortal “febre pestilencial” onde teriam morrido cerca de oito mil tupinambás: “a maioria dos morubixabas morreu dessa peste”.[3]

Mas o choque epidemiológico não foi o único fator responsável pela catástrofe demográfica entre os índios. Manuela Carneiro traz estimativas de população indígena no Brasil do descobrimento de Rosenblat (1954) e Julian Steward (1949) estimam em 1 milhão de habitantes. Denevan (1976) avalia em 6,8 milhões a população aborígine da Amazónia, Brasil central e costa nordeste, o que corresponde a densidade de 14,6 habitantes/km quadrado ao passo que na península ibérica na mesma época este número era 17 habitantes/km quadrado. Darcy Ribeiro utiliza a taxa de depopulação do México de Cook e Borah ( 1957) de 25 para 1 para estimar em 5 milhões a população indígena tendo em vista a população residual atual de 200 mil índios, no entanto, há que se considerar que é consenso que os espanhóis foram mais cruéis que os portugueses em suas conquistas na América. Segundo Darcy Ribeiro: “a população original do Brasil foi drasticamente reduzida por um genocídio de projeções espantosas, que se deu através da guerra de extermínio, do desgaste no trabalho escravo e na virulência das novas enfermidades que os achacaram. A ele se seguiu o etnocídio igualmente dizimadir, que atuou através da desmoralização pela catequese, da pressão dos fazendeiros que iam se apropriando de suas terras, do fracasso de suas próprias tentativas de encontrar um lugar e um papel no mundo dos brancos. Ao genocídio e ao etnocídio se somam guerras de extermínio, autorizadas pela Coroa contra índios considerados hostis, como os do vale do Rio Doce e do Itajaí”.[4] Segundo o testemunho de Fernão Cardim sobre os tamoios no Rio de Janeiro: “estes destruíram os portugueses quando povoaram o Rio e deles há muito poucos”.[5] O próprio padre Anchieta na carta a Mem de Sá “De Gestis Mendi de Saa” de 1560 saúda a o bravo governador por subjugar as populações aborígenes pelo colono português: “quem poderá contar os gestos heroicos do chefe à frente dos soldados, na imensa mata. Cento e sessenta as aldeias incendiadas. Mil casas arruinadas pela chama devoradora. Assolados os campos, com suas riquezas. Passado tudo ao fio de espada”. [6] Para Anchieta tal violência se justificava pois “para esse gênero não há melhor pregação do que a espada e a vara de ferro”. [7] Warren Dean estimou que dos cerca de 100 mil tupinambás em 1500 nos arredores da capitania do Rio de Janeiro, restavam apenas 7 mil em 1600.[8] A bula Sublimis Deus de 1537 divulgada pelo papa Paulo III em que defende uma evangelização respeitosa e pacífica era “letra morta”, segundo Henrique Matos.[9]

Antonio Porro mostra que os cronistas da época descrevem tanto na várzea amazônica como para a costa brasileira, indescritíveis mortandades de indígenas. Antonio Porro mostra que entre as expedições que todo ano faziam chegar ao baixo Amazonas e ao litoral novas levas de cativos, pode-se mencionar as seguintes: a de Pedro da Costa Favela ao Urubu, em 1664, expedição punitiva que se diz ter destruído trezentas malocas; as de João de Moraes Lobo e Faustino Mendes aos Abacaxis e outras tribos entre o Tapajós e o Madeira, em 1691 e diversas outras: “Para entender o brutal despovoamento sofrido pela várzea é preciso também considerar que a ação predatória se abateu sobre populações já dizimadas por novas moléstias contra as quais os organismos não tinham resistências. Que elas precederam de muito a chegada das tropas de resgate e ilustrado pelo caso dos Omágua. Em 1647, muitos anos antes que os portugueses começassem a frequentar o seu território os Omágua foram alcançados por uma epidemia de varíola que durou quase três meses e causou a morte de tal vez um terço da população [...]  Em 1691, ao ser escoltado de volta às suas missões, o jesuíta subiu o Amazonas registrando o despovoamento de grande parte das suas margens. Da foz do Tapajós à do Urubu, em quase 600 km das outrora populosas províncias dos Tapajós, Conduris, Tupinambarana e Arawak, eram agora catorze dias de viagem "sem povoado nem gente", à exceção da aldeia jesuítica de Tupinambarana, nas proximidades da futura Parintins. Da barra do rio Negro à foz do Purus, por mais de 220 km que, havia cinquenta anos, eram povoados pelas "infinitas nações" dos Carabuyana, Caripuna e Zurina, eram agora "nove dias sem haver povoados". A grande aldeia dos Cuchiguara na foz do Purus estava queimada e abandonada e "todos estão retirados com medo".[10]

[1]CUNHA, Manuela Carneiro. História dos índios no Brasil, São Paulo:Cia das Letras, 1992, p. 12

[2]ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes, São Paulo: Cia das Letras, 2000, p.128

[3]SILVA, Rafael Freitas. O Rio antes do Rio. Rio de Janeiro: Babilônia, 2016, p. 366

[4]RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Cia das Letras, 2006, p. 130

[5]RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Cia das Letras, 2006, p. 165

[6]RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Cia das Letras, 2006, p. 45

[7]MATOS, Henrique Cristiano José. Caminhando pela história da Igreja, Belo Horizonte: O  lutador, 1995, p. 96

[8]KOK, Gloria. Os vivos e os mortos, São Paulo: Unicamp, 2001, p.129

[9]MATOS, Henrique Cristiano José. Caminhando pela história da Igreja, Belo Horizonte: O  lutador, 1995, p. 113

[10]CUNHA, Manuela Carneiro. História dos índios no Brasil, São Paulo:Cia das Letras, 1992, p. 191



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