sábado, 13 de fevereiro de 2021

A política de sigilo de Portugal na época dos descobrimentos

 

A caravela com velas latinas conjuga duas características principais: a dimensão das vergas e as proporções do casco.[1] Segundo Charles Boxer, a madeira apropriada não era encontrada facilmente em Portugal. O pinhal de Leiria que a Coroa havia mandado plantar para garantir o fornecimento de madeira para as embarcações portugueses não produzia madeira de qualidade duradoura, de modo que a maior parte era importada de Biscaia e da Europa Setentrional.[2] Jaime Cortesão, por sua vez, mostra que a tecnologia dos artesãos portugueses era mantida em sigilo. O carvalho para as quilhas vinham do Alentejo próximo ao Algarve que tornou-se importante construtor naval, o pinho para os casos vinham das costas de Portugal onde as árvores eram abatidas exclusivamente para construção naval. Velas e cardames eram produzidas em Lagos.[3]  Cadamosto registra as vantagens do uso das caravelas, elogio subscrito pelo próprio papa Nicolau V na bula de 1454 em que concedeu ao Infante D. Henrique o monopólio das expedições marítimas [4]. O historiador Jaime Cortesão em A Política de Sigilo nos Descobrimentos de 1960 destaca a eficiência da máquina política do Império Ultramarino Lusitano em manter em segredo as rotas, as técnicas de navegação e as fontes de riqueza. Tanto D. João II (que reinou de 1481 a 1495) como D. Manuel (que reinou de 1495 a 1521) especialmente proíbem que em qualquer carta de marear seja figurada a costa ocidental africana ao sul do rio do Congo. Segundo Jaime Cortesão talvez política de sigilos já pode ser identificada desde 1454. O descobrimento do Brasil em 1448 seria um dos exemplos de empreendimentos mantidos em sigilo por Portugal. Os primeiros tratados técnicos de navegação começam a surgir apenas em 1570 uma vez que a técnica de construção das caravelas era mantida em sigilo pelos navegadores portugueses e transmitida oralmente.[5] As Ordenações Manuelinas opuseram-se que pilotos, mestres e marinheiros portugueses servissem a nações estrangeiras. D. Manuel condenou Diogo Pires de Sines à perda de seus bens por haver vendido uma caravela a estrangeiros. Em 1454 um comerciante foi executado por ter vendido sua caravela a um comprador inglês [6]. Durante a construção da base naval de São Jorge da Mina em Gana o rei mandou destruir duas urcas de 400 toneladas para sustentar o mito de que somente as caravelas dispunham dos meios para fazer a viagem de ida e volta à costa da Guiné.[7] Duarte Leite, contudo, contesta a tese de sigilo de Cortesão pois navegadores estrangeiros “Luis de Cadamosto, Antonio Usodimare e o trio de Bartolomeu, António e Rafael de Nole ficaram conhecendo a Guiné e ao mesmo tempo roteiros, cartas de marear e outras técnicas náuticas dos portugueses”. Para Álvaro Pimpão “não encontrar fatos cartográficos e econômicos valiosos para a época não nos dá o direito de supor que foram obrigados a omiti-los” [8]. Apesar de navegadores genoveses Antoniotto Usodimare e Antonio de Noli e o veneziano Luis / Alvise de Cadasmoto terem navegado em naus portuguesas Jaime Cortesão alega que eles não tiveram acesso aos segredos de construção das caravelas.[9] Em 1504 D. Manuel proibia que as cartas náuticas registrassem qualquer indicação além das ilhas de S. Tomé e Príncipe [10]. A saída de documentos cartográficos para o estrangeiro era passível de pena de morte conforme descrito numa carta de 1501. [11] Um reflexo desta política de segredo nas navegações foi a carta da Pero Vaz de Caminha mantida em segredo na Torre do Tombo por três séculos. [12] O mapa/planisfério de Cantino de 1502 que mostra o Brasil e a linha de Tordesilhas foi mantido em sigilo e descoberto casualmente pelo diretor da Biblioteca Estense no forro de uma salsicharia em 1859.[13] A carta náutica mostra copiado possivelmente por um espião italiano de um original português  mostra uma descrição bastante precisa da costa africana em especial da costa ocidental a norte do rio Congo.[14] Um agente italiano, depois do regresso de Pedro Álvares Cabral da Índia em 1500 queixava-se “È impossível obter uma carta de viagem, porque o rei decretou a pena de morte para quem mandasse alguma para o estrangeiro”.[15] A cartografia era a arma secreta dos príncipes. No século XVI João Frederico recusou-se a publicar o mapa da Saxônia mesmo estando no centro da Europa e não alguma região distante da Europa.[16] Outro reflexo do segredo da cartografia portuguesa pode-se observar na própria demonização do novo continente. O geógrafo alemão Martinho Waltzmuller ou Waldseemuller, a quem Humboldt chama de “homem obscuro” publicara em 1507 uma Cosmografia em que pela primeira vez o novo continente aparece designado como América com base nas cartas de Américo Vespúcio, ou seja, o excesso de zelo na preservação do segredo acabou transferindo a honra de batizar o continente a um geógrafo alemão que jamais esteve na América.[17]



[1]COSTA, Sergio Correa da. Brasil, segredo de Estado, São Paulo:Record, 2001, p. 96

[2]BOXER, Charles. O império colonial português, Lisboa: Edições 70, 1969, p. 72

[3]MIGLIACCI, Paulo. Os descobrimentos: origens da supremacia europeia, São Paulo:Scipione, 1994, p. 41; BOORSTIN, Daniel. Os descobridores, Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1989, p.158

[4]https://digitarq.arquivos.pt/details?id=3907997

[5]Caravelas e Naus – Um Choque Tecnológico nos séculos XV e XVI, Panavideo produções, 2013 https://www.youtube.com/watch?v=7xUEZt0_osc&fbclid=IwAR0rNrUVqKNBWO-LhM9yrGnOJygRRTSScS966pXJShrpvorh7CUA7p-V5P8

[6]COSTA, Sergio Correa da. Brasil, segredo de Estado, São Paulo:Record, 2001, p. 104

[7]COSTA, Sergio Correa da. Brasil, segredo de Estado, São Paulo:Record, 2001, p. 103

[8]ALVES, Daniel Vecchio. Reconsiderações Historiográficas sobre a Teoria do Sigilo de Jaime Cortesão. Revista Expedições, Morrinhos/GO, v. 9, n. 3, mai./ago. 2018

[9]CORTESÂO, Jaime. Os descobrimentos portugueses, Lisboa: Livros Horizonte, v.II, p. 389, 400

[10]VASCONCELLOS, Ernesto; GAMEIRO, Alfredo; MALHEIROS, Carlos. In: História da Colonização Portuguesa no Brasil, Edição Monumental Comemorativa do Centenário de Independência do Brasil, Porto, Litografia Nacional, 1921, Primeira Parte: O descobrimento, V.1 Os precursores de Cabral, p. CXXVI

[11]VASCONCELLOS, Ernesto; GAMEIRO, Alfredo; MALHEIROS, Carlos. In: História da Colonização Portuguesa no Brasil, Edição Monumental Comemorativa do Centenário de Independência do Brasil, Porto, Litografia Nacional, 1921, Primeira Parte: O descobrimento, V.1 Os precursores de Cabral, p. CXXVII

[12]GOMES, Laurentino. Escravidão, v.I, São Paulo: Globo, 2019. p.111

[13]BARDI, Pietro, O ouro no Brasil, São Paulo:Banco Sudameris, 1988, p. 11

[14]BOXER, Charles. O império colonial português, Lisboa: Edições 70, 1969, p. 50

[15]BOORSTIN, Daniel. Os descobridores, Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1989, p.250

[16]MOUSNIER, Roland. Os séculos XVI e XVII. Tomo IV, 2° volume, História Geral das Civilizações, São Paulo:Difusão, 1957, p. 20

[17]VASCONCELLOS, Ernesto; GAMEIRO, Alfredo; MALHEIROS, Carlos. In: História da Colonização Portuguesa no Brasil, Edição Monumental Comemorativa do Centenário de Independência do Brasil, Porto, Litografia Nacional, 1921, Primeira Parte: O descobrimento, V.1 Os precursores de Cabral, p. CXXI



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