segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

A historiografia dos bandeirantes

 

Segundo Capistrano de Abreu: “As bandeiras do século XVI devastaram sobretudo o Tietê, cujos numerosos tupiniquims desapareceram e, o Alto Paraíba, chamado rio dos Surubis em Piratininga, segundo informa Glimmer; com o tempo foram-se alongando os raios do despovoamento e depredação, característico essencial e inseparável das bandeiras”. Nos Caminhos antigos e o povoamento, de 1899, Capistrano de Abreu já indicava que os bandeirantes tiveram um papel decisivo no extermínio dos indígenas: “concorreram antes para despovoar que para povoar nossa terra, trazendo índios dos lugares que habitavam, causando sua morte em grande número, ora nos assaltos às aldeias e aldeamentos, ora com os maus tratos infligidos em viagens, ora, terminadas estas, pelas epidemias fatais e constantes, aqui e alhures apenas os silvícolas entraram em contato com os civilizados”. Quanto aos capelões que acompanhava as bandeiras, o jesuíta espanhol Ruiz de Montoya (1585-1652) em Conquista Espiritual de 1639 ao discorrer sobre os capelães que acompanhavam os bandeirantes paulistas como “lobos vestidos em peles de ovelhas, uns hipócritas, os quais tem por ofício enquanto os demais [os bandeirantes] andam roubando e despojando as igrejas e prendendo os índios, matando e despedaçando as crianças, eles, mostram longos rosários que trazem ao pescoço, chegando depois aos padres jesuítas espanhóis pedindo-lhes confissão”.[1] Paulo Prado em Retratos do Brasil de 1927 descreve o modus operandi dos bandeirantes: “No anseio do enriquecimento cometeram todos os crimes que os homens dessa época praticavam para satisfação de suas paixões. Vindo da mesma origem metropolitana, a ìndia já lhes era uma escola de barbárie e imoralidade. Segundo Horácio: “Mudam de ceu, mas não de espírito, os que atravessam os mares”. Nada se parece tanto com uma entrada despovoadora dos sertões do Paranapanema, dirigida por Manuel Preto ou um Antonio Raposo, como um ataque de soldados portugueses à povoações asiáticas. Desciam aí dos navios que não se afastavam como refúgio seguro, e repartiam-se sob duas ou três bandeiras nas quais avultava a imagem da cruz. Entrada a povoação inimiga todo o ser vivo era metido à espada, velhos, mulheres, crianças e até animais. Depois da matança começava o saque. Não era menos inglória a guerrilha da bandeira paulista”.[2]

A crônica do jesuíta Montoya se constitui a principal fonte de Capistrano em que narra com certa riqueza de detalhes o ataque de um grupo de bandeirantes às missões. Em um desses ataques dos bandeirantes ao indígenas ocorre no interior de uma igreja: “abriram um postigo [pequena porta] e saindo por ele a modo de rebanho de ovelhas que sai do curral para o pasto, com espadas, machetes e alfanjes lhes derribavam cabeças, truncavam braços, desjarretavam pernas, atravessavam corpos. Provavam os aços de seus alfanjes em rachar os meninos em duas partes, abrir-lhes as cabeças e despedaçar-lhes os membros”. .A “lenda negra” dos bandeirantes, criada principalmente por jesuítas (Montoya, Del Techo, Charlevoix) os qualificava como bandidos, assassinos, rústicos e pagãos, se contrapunha a lenda dourada dos paulistas atualizada pelos autores territorialistas paulistas do IHGB e do IHGSP como Afonso de Taunay (na foto). No entanto, segundo Danielo Ferreti: “Capistrano não adotou um tom moralista, não identificou nas práticas violentas contra os indígenas o critério principal de avaliação do processo histórico, nem considerou seu extermínio e escravização uma espécie de pecado original da nação. A violência, em sua escrita da história, é antes apresentada como uma questão latente, um problema que recusou a escamotear, mas ao qual não oferece resposta explícita”.[3]

Os feitos heroicos dos bandeirantes foram exaltados por historiadores paulistas tais como Afonso Taunay (História Geral das Bandeiras Paulistas, trabalho monumental resultou nos onze volumes publicados entre 1924 e 1950) e Alfredo Ellis Jr. (Raça de gigantes, 1926). Afonso de Taunay foi um grande historiador e diretor do Museu Paulista de 1917 a 1945. Sergio Buarque de Holanda foi seu sucessor. Segundo Alberto Schneider: “Taunay seria o protagonista maior de uma interpretação das bandeiras que confere ao bandeirante o ar de desbravador e integrador glorioso do território nacional. Sérgio Buarque simbolizaria o exato contrário ao acolher uma crítica desta mesma questão”, no entanto, os tomos XIII e XIV dos Anais do Museu Paulista, publicados entre 1946 e 1956, quando Sergio Buarque de Holanda esteve afrente do Museu Paulista, atestam uma continuidade entre as duas diretorias. No entanto, após 1956 Sergio Buarque mostra uma postura mais crítica quando, por exemplo, em Caminhos e fronteiras (1957) reforça a imagem da "lenda negra" sobre personagens emblemáticos das bandeiras, entre os quais, Antônio Raposo Tavares, no caso retratado como um dos "assaltantes" das reduções religiosas do rio Guairá. [4]



[1] ABREU, Capistrano. Capítulos de história colonial, São Paulo: Publifolha, 2000, p. 128

[2] PRADO, Paulo. Retrato do Brasil, São Paulo: Cia das Letras, 1997, p.110

[3] FERRETI, Danilo. Capistrano de Abreu e as bandeiras: entre a condenação indianista e a historiografia laudatória paulista. In: Os bandeirantes e a historiografia brasileira: questões e debates  contemporâneos/ Diogo da Silva Roiz, Suzana Arakaki, Tânia Regina  Zimmermann (organizadores)  Serra: Editora Milfontes, 2018 https://editoramilfontes.com.br/acervo/Os%20Bandeirantes%20e%20a%20historiografia%20brasileira.pdf

[4] SCHNEIDER, Alberto Luiz  and  MARTINS, Renato. A EXPANSÃO PAULISTA EM AFONSO DE TAUNAY E SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA: REFLEXÕES E TRAJETÓRIAS. Rev. Hist. (São Paulo) [online]. 2019, n.178 [cited  2021-02-15], a01018. Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-83092019000100312&lng=en&nrm=iso>.



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