sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Deus relojoeiro

 

O avanço da tecnologia de relógios na idade média foi tão significativo que o eclesiástico matemático Nicholas Oresme, bispo de Lisieux em 1382, pela primeira vez, utilizou-se da analogia da harmonia do universo como um relógio mecânico com a expressão “machina mundi”. Para Oresme “Se alguém fizesse um relógio mecânico não faria com que as rodas se movessem o mais harmoniosamente possível ?”. Esta mesma expressão aparece em Lucrécio, porém, em um contexto de sarcasmo. Cícero (106-43 a.) faz uma analogia entre máquinas inteligentemente projetadas e o movimento ordenado dos planetas e estrelas: “quando vemos alguns exemplos de um mecanismo [...] acaso duvidamos de que se trate da criação de uma inteligência consciente? Da mesma forma, quando vemos os movimentos dos corpos celestes [...] como podemos duvidar de que esses também não são apenas obras da razão, mas de uma razão que é perfeita e divina”. Robert Grosseteste em De sphere escrita em 1224 usa da mesma metáfora.[1] Kepler em 1605 ao descrever se modelo cosmológico descreve: “O meu objetivo é demonstrar que a máquina celeste não deve ser comparada a um organismo divino, mas antes a um mecanismo de relógio”.[2] A visão mecanicista da natureza de Descartes (1596-1650) mostra a natureza e o corpo humano como a metáfora de um relógio. No século XVII Robert Boyle observa que a metáfora mecanicista do relógio pode aceitar Deus como o grande relojoeiro criador e que mantém todo o universo em funcionamento. A metáfora da Antiguidade da Terra como organismo vivo é substituída pela metáfora da terra enquanto mecanismo [3] Samuel Clarke aluno de Newton por sua vez explica que seu mestre rejeitou a metáfora do relojoeiro: “A ideia do mundo como uma grande máquina, funcionando sem a interposição de Deus, como o relógio funciona sem a assistência do relojoeiro; é a noção do materialismo e destino, e tende a excluir a providência e o governo de Deus na realidade do mundo”.[4]



[1] WHITE, Lynn. Medieval technology & social change. Oxford University Press, 1964, p.125,174

[2]BOORSTIN, Daniel. Os descobridores, Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1989, p.78

[3]HOOYKAAS, R.. A religião e o desenvolvimento da ciência moderna. Brasília:UNB, 1988, p.33

[4]DAVIS, Edward. Mito 13: que a cosmologia mecanicista de Isaac Newton eliminou a necessidade de Deus. In: NUMBERS, Ronald. Terra plana, Galileu na prisão e outros mitos sobre a ciência e religião, Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020, p. 166




Nenhum comentário:

Postar um comentário

Doação de Constantino

  Marc Bloch observa a ocorrência de falsificações piedosas tais como a pseudo doação de Constantino ( Constitutum Donatio Constantini ) ao ...