quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Egito e a tese hidraulica marxista

 

Egito e a tese hidraulica marxista: As cheias regulares do Nilo permitiam uma irrigação natural que ampliava a área de cultivo. Com uso de uma irrigação ordenada aplicada a um húmus fecundo deixado pelas cheias do Nilo o Egito tornou-se no celeiro da Antiguidade com produção abundante de trigo, cevada e sorgo[1]. Heródoto narra que “tão logo o rio se eleva por vontade própria, rega os campos de cultiva e se retira, cada um deles semeia seu campo e conduz até ele seus porcos para que com suas garras introduzam as sementes. Depois não precisam fazer outra coisa a não ser esperar a colheita”.[2] Com o declínio do nível do Nilo as terras seriam enriquecidas com o lodo encharcando profundamente a terra. Em 1957 Wittfogel defendeu a tese conhecida como “tese hidráulica” de a irrigação artificial introduzida por volta de 3000 a.c. foi elemento central para busca de um poder centralizado e para integração dos reinos do Alto e Baixo Egito pelo rei Menés, pois somente um poder central conseguiria empreender a tarefa de irrigação de modo a otimizar os rendimentos de uma economia predominantemente agrícola[3]. Em Medinet et Faium, a chamada “Veneza do Egito” há um antiquíssimo curso de água artificial de cerca de 300 quilômetros conhecido como “Bahr Yusuf” ou “Canal de José” que teria sido construído pelo José bíblico no tempo do faraó Amenemhat III (1860-1814 a.c.).[4] O papiro de Wilbour da XX Dinastia mostra que sob Ramsés V a semeadura da maior parte da superfície cultivada era controlada administrativamente pelo governo central,[5] no entanto esta fonte é mais tardia. A unificação conseguida em torno de um projeto tecnológico de irrigação desenvolveu tanto no Egito como na Mesopatâmia o que Mary Austin denomina “coletivismo da utilidade indivisível”.[6] Jean Vernant observa que a tese não se aplica na Grécia [7]. Esta tese desenvolve o conceito de “modo de produção asiático” exposto por Marx, segundo o qual, muitas sociedades, principalmente asiáticas, dependiam largamente da construção de obras de irrigação em larga escala, organizada sob o controle de um poder central despótico. Karl Wittfogel publicou em 1957 “Despotismo oriental: um estudo comparativo do poder total” em que defende a tese de os poderorsos estados da antiguidade foram montados em função de grandes obras hdraulicas o que levou a um despotismo oriental.[8] Esta tese foi contestada posteriormente a partir dos estudos arqueológicos que detectaram a ausência de indícios de grandes obras de irrigação no III e II milênio a. C. Os soberanos da XII Dinastia (1990 a.c. a 1780 a.c.) concluíram a canalização da primeira catarata começada durante a VI Dinastia.[9] Lewis Mumford observa que uma das grandes realizações do primeiro faraó Menés ao unificar os reinos do Norte e do Sul foi o desvio do curso do Nilo para regularização da irrigação: “aceitando esse duro desafio, as aldeias, numa antiga fase aprenderam as vantagens da ajuda mútua, do planejamento a longo prazo, da aplicação paciente a uma tarefa comum, tudo isso repetido estação após estação. A autoridade, sobrevivente por longo tempo, do Conselho de Anciãos denota uma antiga mobilização comunal da força de trabalho sob uma liderança competente, embora local”[10]. Segundo Ciro Flamarion a irrigação não é causa do surgimento do Estado centralizado mas pelo contrário, a irrigação centralizada somente se tornou possível após a existência de um Estado centralizado.[11] Kurt Butzer mostra que embora a agricultura fosse praticada por quase dois milênios antes da unificação política dos Reinos do Alto e Baixo Egito por volta de 3000 a.c. a evidência mais antiga de irrigação artificial é uma cabeça de clava de calcário de cerca de 25 cm de altura, símbolo do poder real, que mostra o rei Escorpião (rei Narmer ou Menés, possivelmente[12]) um dos últimos reis pré dinásticos cortando um dique de irrigação para dar início a inundação dos campos datada de 3200 a.c.. Para Karl Butzer é difícil aceitar a tese de Baumgartel de que a cena mostra a construção de um templo.[13] Uma das distinções mais honoríficas no Antigo Egito era a de “Escavador de canal”.[14] Heródoto relata que o Alto Egito era um pântano até que o primeiro faraó Menés / Narmer [15] construiu diques ao sul de Mênfis o que permitiu que o delta do rio fosse drenado  e transformado em uma imensa reserva de terra aumentando a área cultivada.[16] Uma inscrição de 1870 a.c. registra a construção de um canal de 150 côvados de comprimento, 20 côvados de largura e 15 de profundidade tornando possível a navegação à primeira catarata [17]. O grego Menes deriva do egípcio mena que significa “o fundador”, o que segundo alguns autores pode indicar que a Menés não é um personagem histórico.[18]



[1]MATTOSO, Antonio. História da civilização, Lisboa:Ed Sá da Costa, 1952, p.86

[2]STROUHAL, Eugen. A vida no antigo Egito. Barcelona:Folio, 2007, p. 95-96

[3]HODGES, Henry. Technology in the ancient world, New York: Barnes & Noble Books, 1970, p. 91

[4]KELLER, Werner, E a Bíblia tinha razão, Sâo Paulo: Melhoramentos, 1964, p.92

[5]CARDOSO, Ciro Flamarion. O Egito antigo. Coleção Tudo é história, n° 36, São Paulo:Brasiliense, 1986, p.37; CAMP, L. Sprague de. The ancient engineers, New York: Ballantine Books, 1963, p. 13

[6]MUMFORD, Lewis. A cidade na história, São Paulo:Martins Fontes, 1982, p. 149

[7]VERNANT, Jean Pierre. As origens do pensamento grego, Rio de Janeiro:Difel, 2002, p. 25

[8]VAINFAS, Ronaldo; FARIA, Sheila; FERREIRA, Jorge; SANTOS, Georgina. História Volume único, São Paulo:Saraiva, 2010, p.28

[9]GRIMBERG, Carl. História Universal: a aurora da civilização, v.1, Chile:Publicações Europa, 1989, p. 49

[10]MUMFORD, Lewis. A cidade na história, São Paulo:Martins Fontes, 1982, p. 70, 72

[11]CARDOSO, Ciro Flamarion. O Egito antigo. Coleção Tudo é história, n° 36, São Paulo:Brasiliense, 1986, p.24, 47, 102

[12]MALKOWSKI, Edward. O Egito antes dos faraós. São Paulo:Cultrix, 2010, p. 168, 208; CHILDE, Gordon. Early forms of society. In: SINGER, Charles; HOLMYARD, E. A history of technology, Oxford Clarendon Press, 1958, p. 51

[13]BUTZER, Karl. Early hidraulic civilization in Egypt, Chicago:University Chicago Press, 1976, p.47 https://oi.uchicago.edu/sites/oi.uchicago.edu/files/uploads/shared/docs/early_hydraulic.pdf

[14]JOHNSON, Paul. História Ilustrada do Egito. Rio de Janeiro:Ediouro, 2002, p. 21

[15]DUNAN, Marcel; BOWLE, John. Larousse encyclopedia of ancient & medieval history, Paris:Larousse, 1963, p.41

[16]JOHNSON, Paul. História Ilustrada do Egito. Rio de Janeiro:Ediouro, 2002, p. 35

[17]JOHNSON, Paul. História Ilustrada do Egito. Rio de Janeiro:Ediouro, 2002, p. 178

[18]WEST, John Anthony. The traveler’s key to ancient Egypt, New York:Quest, 2012, p. 6, 225



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