terça-feira, 29 de setembro de 2020

Doutrina das assinaturas

 

Xamãs africanos descobriam o poder curativo de plantas associando a sua forma e cor com a doença ou parte do corpo enferma, assim sementes com a forma de dedos e raízes parecidas com cabelos sugerirão o seu uso para tratar de dedos com infecções ao redor das unhas.[1] Cassiodoro no século VI relata que o fundamento da arte de curar residia não somente no princípio ativo presentes nas plantas medicinais mas nas repercussões que as plantas produziam no imaginário.[2] Roger Bacon praticante de alquimia acreditava na doutrina das assinaturas (Opus Tertium cap. 27), segundo a qual a forma e a cor das flores e folhas correspondiam a uma finalidade especial definida pelo Criador.[3] Miguel Escoto, filósofo do século XIII, astrólogo na Corte de Frederico II[4] e introdutor de Averrois ou Ibn Rushd no Ocidente, em seu livro Physionomia aceitava a doutrina de assinaturas.[5] Esta doutrina da signatura plantarum era defendida por Paracelso na busca de medicamentos nas plantas[6]. Para Paracelso: “tudo quanto é criado pela natureza é por ela configurado de acordo com a essência da virtude que lhe é inerente”.[7] Segundo a doutrina das assinaturas “A natureza marca cada crescimento de acordo com o seu benefício curativo”. Jakob Bohme (1575-1624) publicou Signatura Rerum (A assinatura de todas as coisas) em que apresenta a doutrina das assinaturas. Por exemplo, uma orquídea que se assemelhava a um testículo era um sinal de que poderia ser usada no combate a doenças venéreas [8], as folhas de lilás tem uma forma similar ao coração o que indica sua eficácia no tratamento de doenças cardíacas [9], uma planta de folhas amarelas poderia ser usada em doenças do fígado. Plínio refere-se ao princípio de que o semelhante cura o semelhante e paradoxalmente a causa de uma doença representa sua cura, assim utiliza-se partes de um cachorro louco para curar sua mordida, a mordida de um phalangium pode ser curada meramente ao se olhar para outro inseto daquela espécie, estivesse ele vivo ou morto, pedras nos rins podem ser quebradas pela administração de ervas que se assemelham a pérolas, o ophites um mármore com estrias na forma de uma serpentina é usado como amuleto contra mordida de cobra; ervas com folhas no formato dos órgãos sexuais são usadas como afrodisíacos.[10] O tomate rico em potássio e ferro é benéfico ao coração e é rico em licopeno que ajuda a limpar as artérias, a noz rica em ácidos graxos faz bem ao cérebro[11], a romã que se parece com o ovário dos mamíferos de fato produz hormônios benéficos ao organismo, o abacate que exige nove meses desde o florescer até se transformar em fruto evita as chances de câncer de útero ou ovário, o gengibre faz bem ao estômago, a cenoura faz bem aos olhos e os cogumelos ao ouvidos, as folhas em forma de coração da dedaleira roxa eram usadas  como medicamento para o coração (digitalis), as veias roxas e pontinhos amarelos da eufrásia que pareciam com um olho não saudável eram usados como remédio para doenças no olho, a mandrágora devido à sua semelhança à forma humana recebia poderes humanos era associada à bruxaria[12]. Claude Levi Strauss mostra que diferentes culturas como o México e Filipinas chegaram a mesma conclusão quanto a aplicação de determinadas plantas medicinais, por segurem processos paralelos de investigação. Baseado neste princípio de que “igual cura o igual”[13] plantas cujas folhas ou talos tem sabor amargo acabam sendo testadas contra dores no estômago, ou seja, a identificação de um padrão comum com uma experiência bem sucedida levou os indígenas a buscar novos tipos de plantas de sabores similares para outras aplicações, ou seja, sabor, forma ou outra característica são fundamentais para esse processo empírico de investigação, o que destaca a importância da seleção e classificação de tais plantas como encontrado nestes mesmos grupos indígenas.[14] Para Claude Levi Strauss: “o homem da era neolítica ou da proto história é, portanto, o herdeiro de uma longa tradição científica”.[15]



[1]TERESI, Dick. Descobertas perdidas, São Paulo:Cia das Letras, 2008, p.288

[2]POUCHELLE, Marie-Christine. Medicina. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude. Dicionário analítico do Ocidente medieval. v.II, São Paulo:Unesp, 2017, p. 181

[3]SEDGWICK, W.; TYLER, H; BIGELOW, R. História da ciência: desde a remota antiguidade até o alvorescer do século XX, Rio de Janeiro:Ed. Globo, 1952, p.182

[4]THORNDIKE, Lynn. A History of magic and experimental science, v.II, Columbia University Press, 1923, p.309; LYONS, Jonathan. A casa da sabedoria, Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p.200; TATON, René. A ciência antiga e medieval: a Idade Média, tomo I, v.III, São Paulo:Difusão, 1959, p. 115

[5]THORNDIKE, Lynn. The place of magic in the intellectual history of Europe. Columbia University Press, 1905, p.17

[6]DELUMEAU, Jean. A civilização do Renascimento, Lisboa:Estampa, 1984, v.II, p.136

[7]MANGOLD, Lydia Mez. Imagens da história dos medicamentos, Basileia:Hoffman La Roche, 1971, p.114

[8]STRATHERN, Paul. O sonho de Mendeleiev: a verdadeira história da química, Rio de Janeiro:Zahar, 2002, p.77; BOORSTIN, Daniel. Os descobridores, Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1989, p.316

[9]FARIAS, Robson Fernandes. Paracelsus e a alquimia medicinal, São Paulo: Gaia, 2006, p.58

[10]THORNDIKE, Lynn. A History of magic and experimental science, v.I, Columbia University Press, 1923, p.86, 94

[11]http://www.greenmedinfo.com/blog/why-walnut-resembles-brain-it-nourishes

[12]AIREY, Raje; O’CONNELL, Mark. Almanaque ilustrado dos símbolos, São Paulo:Escala, 2010, p. 172

[13]SHAPIRO, Harry. Homem, cultura e sociedade, Lisboa: Fundo de Cultura, 1972, p. 235

[14]STRAUSS, Claude Lévi. O pensamento selvagem. São Paulo:Cia Editora Nacional, 1970, p. 35

[15]STRAUSS, Claude Lévi. O pensamento selvagem. São Paulo:Cia Editora Nacional, 1970, p. 36



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Doação de Constantino

  Marc Bloch observa a ocorrência de falsificações piedosas tais como a pseudo doação de Constantino ( Constitutum Donatio Constantini ) ao ...