sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Religio e supestitio

 

Segundo Coulanges: “Antiga crença ordenava ao homem que honrasse os antepassados, o culto dos antepassados agrupou a família ao redor do altar. Daí a primeira religião, as primeiras orações, a primeira concepção do dever e a primeira moral; daí também a instituição da propriedade, a fixação da ordem de sucessão e, enfim, o do direito privado e todos os estatutos da organização doméstica. Depois essa crença progrediu e, ao mesmo tempo, ampliou-se a associação. Os homens, à medida que sentem que há para eles divindades comuns, vão se associando em grupos cada vez maiores. As mesmas regras, descobertas e aplicadas na família, aplicam-se sucessivamente à fratria, à tribo, à cidade”.[1] No culto dos antepassados, cada gens, cada irmandade (fratria), cada família tinha seus próprios deuses e rituais.[2] Segundo Raymond Bloch “no princípio e no decurso da história de Roma, numerosos são os vestígios de magia e de misticismo elementar; não havia nenhum nascimento que não fosse protegido por uma divindade, nenhum crescimento que não tivesse os seus numina”, e assim também as atividades agrícolas como o arroteamento do solo, passagem do arado, semeadura, germinação do grão, colheita, tudo era regido pela crença nos numina, ou seja, pelos “poderes divinos” que no princípio era simbolizado pelo culto dos lares. [3] Derek Colins mostra que o conceito de magia havia se confundido com maleficum – crime, calúnias ou envenenamentos, de modo que não se observa na legislação romana mais antiga como as Doze Tábuas qualquer condenação direta a feitiços mágicos.[4] A lei Cornelia previa a condenação de  assassinos e envenenadores – sicariis et veneficiis e assim muitos praticantes de magia foram condenados. Não estavam claras as fronteiras entre as honras e rituais devidas aos deuses (religio) e aquilo que poderia ser considerado como excessivo a que os romanos chamavam de superstitio (significado diferente do atual superstição) e que Cicero distingue da religio.[5] Em 158 d.c. Apuleio foi acusado de magia e em sua defesa alegou que suas práticas eram de culto religio usual. Com Agostinho no século IV já há uma associação direta da supestitio como as magicae artes, ou malae artes pactuadas com demônios, ou seja, associadas a algum malefício. Com o Codigo Teodosiano (438 d.c.) a condenação aos magos é clara: “Deve ser punido e vingado de modo merecido com as leis mais severas o conhecimento (scientia) daqueles que, com auxílio das artes mágicas (magicae artes) ou ameaçam a segurança de alguém ou fizeram com que mentes castas se voltassem à luxúria”.[6]


[1]COULANGES, Fustel. A cidade antiga, São Paulo: Hemus, 1976, p.105

[2]ROSTOVTZEFF, M. História da Grécia. Rio de Janeiro:Zahar, 1983, p.113

[3]BLOCH, Raymond; COUSIN, Jean. Roma e o seu destino. Rio de Janeiro:Cosmos, 1964, p.179

[4]COLLINS, Derek. Magia no mundo grego antigo, São Paulo: Madras, 2009, p. 209

[5]COLLINS, Derek. Magia no mundo grego antigo, São Paulo: Madras, 2009, p. 215

[6]COLLINS, Derek. Magia no mundo grego antigo, São Paulo: Madras, 2009, p. 237



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