Panofski sugeriu que a catedral gótica era um reflexo dos tratados
escolásticos organizados em um sistema de partes homólogas. Panosky deixa claro
que estilo e evolução estilística resultam do manejo das formas numa relação
causal com a escolástica[1]. Panofsky
observa que a arquitetura gótica é contemporânea do ápice da escolástica e
representam a “vitória do aristotelismo”,
o triunfo da razão, apesar dos percalços de 1215 com a controvérsia na
Universidade de Paris, mas que ao final foi resolvida em favor de Tomás de
Aquino. Em 1231 o papa Gregório IX concedeu novamente o consentimento de ensino
para a Metafísica de Aristóteles que havia sido proibida em 1210 junto com
outras obras aristotélicas.[2] Van Bath
da mesma forma entende o surgimento do gótico como relacionado a vitalidade
urbana e revolução agrícola do século XII na alta idade média: “no século XII
assiste-se na Europa ocidental e meridional, a um período de exuberante
desenvolvimento. Nos anos que vão de 1150 a 1300 atingiu-se, quer no plano
cultural quer no plano material, um ponto alto que não viria a ser igualado
senão muitos anos mais tarde. Este avnço verifivou-se não apenas na teologia,
filosofia, arquitetura, ecultura, vidraria e literatura, mas também nas
condições materiais de vida”.[3]
Da mesma forma que a escolástica surgiu nos mosteiros fomentada pelos
beneditinos e levada ao auge por dominicanos e franciscanos, o estilo gótico
também foi fomentado nos mosteiros e introduzido em Saint Denis por Suger no
século XIII que teve de enfrentar o antagonismo estético de S. Bernardo. Com a
escolástica se desenvolveu o conceito de segmentação e indexação do raciocínio
em parágrafos, seções, capítulos e tomos. Esta estruturação com o objetivo de
clarear a fé também é observada na notação musical com a introdução dos tons
breve, semibreve, mínima, etc.[4] Enquanto
na pré escolástica fé e razão são mundos impenetráveis e distintos numa
barreira intransponível, com a escolástica estes mundos se interpenetram. Na
catedral gótica, por sua vez, o que de fora parece fechado e impenetrável, por
dentro se revela extraordinariamente pictórico transmitindo a impressão de ser
ilimitado. [5]
As diferentes partes da construção nave central, transcepto, naves laterais,
coro, deambulatório, assumem uma analogia com a hierarquia dos níveis lógicos
de um tratado de escolástica bem estruturado. Enquanto a ornamentação faustosa
de colunas, nervuras e arcobotantes confere sustentatação à obra, o refinamento
da argumentação lógica sustenta as conclusões da escolástica. Enquanto que
escolástica de Pedro Abelardo em sua obra Sic
et Non no século XII são expostas contradições de autoridades e formas de
conciliação entre estas autoridades, na arquitetura as catedrais góticas irão
buscar soluções técnicas que conciliem técnicas aparentemente incompatíveis,
como por exemplos os problemas para realização da rosácea na fachada ocidental,
a estrutura da parede debaixo do clerestório (parte da parede de uma nave,
iluminada naturalmente por um conjunto de janelas laterais do andar superior
das igrejas medievais do estilo gótico) e a conformação dos pilares na nave
central, todas técnicas trazidas de autoridades da arquitetura gótica. O pilar
cantonado combina os agregados redondos com um núcleo cilíndrico[6]. O livro
das corporações dos mestres pedreiros de Villard de Honnecourt sobre um esboço
de um conjunto de coro feito em conjunto com outro mestre Pierre de Corbie
possui uma inscrição em que se lê “inter
se disputando” o que mostra dois mestres arquitetos numa disputatio
aos moldes de uma disputa escolástica. Bucher, por sua vez, argumenta que esta
passagem mostra uma divergência entre dois arquitetos sobre um projeto sem
qualquer relação com a escolástica, ou que fosse resultado de um “hábito mental” comum as duas áreas.
Shelby, por sua vez, mostra que a matemática dos arquitetos era distinta da
usada pelos eruditos de modo que constituíam universos intelectuais distintos,
sendo, portanto, reduzidas as possibilidades de transmissão de um “hábito mental” de uma área à outra.
Ademais Panofsky apresenta poucos exemplos para fundamentar sua tese de conexão
do gótico com a escolástica o que revela que possa ter sido seletivo nos
exemplos mencionados. Hilário Franco observa que não se pode reduzir o gótico à
simples materialização da teologia. Jurgis Baltrusaitis, por outro lado, mostra
que o gótico incorporou diversas simbologias do mundo pagão como seres
acéfalos, monstros tais como sereias que podem ser vistos, por exemplo, em um
capitel do claustro de Elne no Languedoc no Sul da França e plantas zoomórficas
demonstrando assim uma dualidade permanente, o que mostra que a cultura da
Europa Ocidental estava imbuída de elementos presentes em outras culturas em
especial do imaginário do Extremo Oriente.[7] Bourdieu,
em Posfácio à sua tradução francesa da obra de Panofsky, concorda sua abordagem
de que um hábito mental produzido pela filosofia escolástica pode ter
influenciado a arquitetura gótica, estabelecendo uma relação de causa e efeito
que desafia os positivistas que entendem a técnica atuando de modo autônomo do
contexto social e afirma categoricamente logo em sua primeira linha: “Arquitetura
gótica e pensamento escolástico é, com certeza, um dos mais belos desafios que
já se fez ao positivismo” A relação causal homóloga entre a obra técnica do
gótico e a obra intelectual da escolástica remete ao conceito de híbrido de
Bruno Latour em Jamais fomos modernos.
[1] YATES, Frances. A arte
da memória. São Paulo:Unicamp, 2007, p.105; GOMES, Vinícius Sabino. A origem do
gótico nas ideias de Erwin Panofsky. Medellín – Colombia, v. 20, n. 45, p.
359-388, julio-diciembre 2012 http://www.scielo.org.co/pdf/esupb/v20n45/v20n45a06.pdf
[2] PANOFSKY, Erwin.
Arquitetura gótica e escolástica. São Paulo:Martins Fontes, 2001, p.5
[3]
ANDERSON, Perry. Passagens da antiguidade ao feudalismo, Porto: Afrontamento,
1982, p. 219
[4] PANOFSKY, Erwin.
Arquitetura gótica e escolástica. São Paulo:Martins Fontes, 2001, p.28
[5] PANOFSKY, Erwin. Arquitetura
gótica e escolástica. São Paulo:Martins Fontes, 2001, p.31
[6] PANOFSKY, Erwin.
Arquitetura gótica e escolástica. São Paulo:Martins Fontes, 2001, p.50
[7] JÚNIOR, Hilário Franco.
A idade média nascimento do Ocidente, São Paulo:Brasiliense, 2004, p.111
Nenhum comentário:
Postar um comentário