domingo, 26 de julho de 2020

Panofsky a escolástica e o gótico

Panofski sugeriu que a catedral gótica era um reflexo dos tratados escolásticos organizados em um sistema de partes homólogas. Panosky deixa claro que estilo e evolução estilística resultam do manejo das formas numa relação causal com a escolástica[1]. Panofsky observa que a arquitetura gótica é contemporânea do ápice da escolástica e representam a “vitória do aristotelismo”, o triunfo da razão, apesar dos percalços de 1215 com a controvérsia na Universidade de Paris, mas que ao final foi resolvida em favor de Tomás de Aquino. Em 1231 o papa Gregório IX concedeu novamente o consentimento de ensino para a Metafísica de Aristóteles que havia sido proibida em 1210 junto com outras obras aristotélicas.[2] Van Bath da mesma forma entende o surgimento do gótico como relacionado a vitalidade urbana e revolução agrícola do século XII na alta idade média: “no século XII assiste-se na Europa ocidental e meridional, a um período de exuberante desenvolvimento. Nos anos que vão de 1150 a 1300 atingiu-se, quer no plano cultural quer no plano material, um ponto alto que não viria a ser igualado senão muitos anos mais tarde. Este avnço verifivou-se não apenas na teologia, filosofia, arquitetura, ecultura, vidraria e literatura, mas também nas condições materiais de vida”.[3]

Da mesma forma que a escolástica surgiu nos mosteiros fomentada pelos beneditinos e levada ao auge por dominicanos e franciscanos, o estilo gótico também foi fomentado nos mosteiros e introduzido em Saint Denis por Suger no século XIII que teve de enfrentar o antagonismo estético de S. Bernardo. Com a escolástica se desenvolveu o conceito de segmentação e indexação do raciocínio em parágrafos, seções, capítulos e tomos. Esta estruturação com o objetivo de clarear a fé também é observada na notação musical com a introdução dos tons breve, semibreve, mínima, etc.[4] Enquanto na pré escolástica fé e razão são mundos impenetráveis e distintos numa barreira intransponível, com a escolástica estes mundos se interpenetram. Na catedral gótica, por sua vez, o que de fora parece fechado e impenetrável, por dentro se revela extraordinariamente pictórico transmitindo a impressão de ser ilimitado. [5] As diferentes partes da construção nave central, transcepto, naves laterais, coro, deambulatório, assumem uma analogia com a hierarquia dos níveis lógicos de um tratado de escolástica bem estruturado. Enquanto a ornamentação faustosa de colunas, nervuras e arcobotantes confere sustentatação à obra, o refinamento da argumentação lógica sustenta as conclusões da escolástica. Enquanto que escolástica de Pedro Abelardo em sua obra Sic et Non no século XII são expostas contradições de autoridades e formas de conciliação entre estas autoridades, na arquitetura as catedrais góticas irão buscar soluções técnicas que conciliem técnicas aparentemente incompatíveis, como por exemplos os problemas para realização da rosácea na fachada ocidental, a estrutura da parede debaixo do clerestório (parte da parede de uma nave, iluminada naturalmente por um conjunto de janelas laterais do andar superior das igrejas medievais do estilo gótico) e a conformação dos pilares na nave central, todas técnicas trazidas de autoridades da arquitetura gótica. O pilar cantonado combina os agregados redondos com um núcleo cilíndrico[6]. O livro das corporações dos mestres pedreiros de Villard de Honnecourt sobre um esboço de um conjunto de coro feito em conjunto com outro mestre Pierre de Corbie possui uma inscrição em que se lê “inter se disputando” o que mostra dois mestres arquitetos numa disputatio aos moldes de uma disputa escolástica. Bucher, por sua vez, argumenta que esta passagem mostra uma divergência entre dois arquitetos sobre um projeto sem qualquer relação com a escolástica, ou que fosse resultado de um “hábito mental” comum as duas áreas. Shelby, por sua vez, mostra que a matemática dos arquitetos era distinta da usada pelos eruditos de modo que constituíam universos intelectuais distintos, sendo, portanto, reduzidas as possibilidades de transmissão de um “hábito mental” de uma área à outra. Ademais Panofsky apresenta poucos exemplos para fundamentar sua tese de conexão do gótico com a escolástica o que revela que possa ter sido seletivo nos exemplos mencionados. Hilário Franco observa que não se pode reduzir o gótico à simples materialização da teologia. Jurgis Baltrusaitis, por outro lado, mostra que o gótico incorporou diversas simbologias do mundo pagão como seres acéfalos, monstros tais como sereias que podem ser vistos, por exemplo, em um capitel do claustro de Elne no Languedoc no Sul da França e plantas zoomórficas demonstrando assim uma dualidade permanente, o que mostra que a cultura da Europa Ocidental estava imbuída de elementos presentes em outras culturas em especial do imaginário do Extremo Oriente.[7] Bourdieu, em Posfácio à sua tradução francesa da obra de Panofsky, concorda sua abordagem de que um hábito mental produzido pela filosofia escolástica pode ter influenciado a arquitetura gótica, estabelecendo uma relação de causa e efeito que desafia os positivistas que entendem a técnica atuando de modo autônomo do contexto social e afirma categoricamente logo em sua primeira linha: “Arquitetura gótica e pensamento escolástico é, com certeza, um dos mais belos desafios que já se fez ao positivismo” A relação causal homóloga entre a obra técnica do gótico e a obra intelectual da escolástica remete ao conceito de híbrido de Bruno Latour em Jamais fomos modernos.



[1] YATES, Frances. A arte da memória. São Paulo:Unicamp, 2007, p.105; GOMES, Vinícius Sabino. A origem do gótico nas ideias de Erwin Panofsky. Medellín – Colombia, v. 20, n. 45, p. 359-388, julio-diciembre 2012 http://www.scielo.org.co/pdf/esupb/v20n45/v20n45a06.pdf

[2] PANOFSKY, Erwin. Arquitetura gótica e escolástica. São Paulo:Martins Fontes, 2001, p.5

[3] ANDERSON, Perry. Passagens da antiguidade ao feudalismo, Porto: Afrontamento, 1982, p. 219

[4] PANOFSKY, Erwin. Arquitetura gótica e escolástica. São Paulo:Martins Fontes, 2001, p.28

[5] PANOFSKY, Erwin. Arquitetura gótica e escolástica. São Paulo:Martins Fontes, 2001, p.31

[6] PANOFSKY, Erwin. Arquitetura gótica e escolástica. São Paulo:Martins Fontes, 2001, p.50

[7] JÚNIOR, Hilário Franco. A idade média nascimento do Ocidente, São Paulo:Brasiliense, 2004, p.111



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