quarta-feira, 29 de julho de 2020

Corporações de ofício e Revolução Francesa

Sob o Antigo Régime, o corpo de comércio também conhecido como (métiers jurés, corporations, commnunautés jurées o jurands) era formalizado pelo juramento mútuo que todos os anos os membros da corporação deveriam prestar aos mestres se comprometendo em observar os regulamentos e manter uma ética profissional. Um edito de abril 1776 em Versalhes assinado por Turgot suprimiu os jurandes: “Será livre para todas as pessoas, de qualquer qualidade e condição, que elas sejam, assim como para todos os estrangeiros, ainda que não tenham obtido as cartas de autorização, de abraçar e exercer em todo nosso reino e sobretudo na cidade de Paris, qualquer espécie de comércio e profissão de artes e ofícios [...] extinguimos todas as corporações e comunidades de comerciantes e artesãos, assim como mestres e jurandes, revogamos todos os privilégios, estatutos e regulamentos dados por tais corporações e comunidades, por cuja razão ninguém pode ser perturbado no exercício de seu comércio e de sua profissão por qualquer motivo e sob qualquer pretexto”.[1] Entretanto o edito de Turgot foi revogado em agosto de 1776,  apenas alguns meses depois de assinado. Em 1779 o Abade Coyer critica o sistema de corporações; “Meditai nisso. Vós que ainda suportais um sistema de regulamentos e de privilégios régios de monopólios”.[2] Em carta escrita a M. Gournay, Turgot se refere ao controle excessivo das corporações que regulam o comprimento e largura de cada peça de estopo, o número de fios  de que deve ser composto: “e um sem número de outros estatutos ditados pelo espírito do monopólio, cujo único objetivo é desencorajar a indústria, concentrar o comércio num pequeno número de mãos pela multiplicação de formalidades e gastos, pela sujeição a aprendizagem e corporações de dez anos, para misteres que se podem aprender em dez dias, pela exclusão daqueles que não são filhos de mestres, daqueles que são nascidos fora de certos limites, pela interdição de se empregar mulheres na fabricação de tecidos, etc. Não fico menos espantado ao ver o governo se ocupar em regular a circulação de cada mercadoria, proscrever um gênero de indústria para fazer florir um outro, sujeitar a incômodos particulares a venda das provisões mais necessárias à vida, impedir de fazer armazéns de um gênero, cuja colheita varia todos os anos e cujo consumo é sempre mais ou menos igual”.[3]. Apesar disso a revolução de 1789 levou novamente a abolição das regulamentações das corporações com a liberalização do comércio. Uma nova lei de patentes seria adotada em 1791 baseada na lei inglesa de 1623, no entanto, com alcance maior na medida em que declarava a existência de um direito de propriedade absoluto sobre as invenções[4]. Em 1791 a Assembleia Constituinte aprovou uma nova lei de patentes adotando o projeto de Boufflers. Esta lei de 1791 aboliu o exame técnico de patenteabilidade, que desde 1699 era realizado pela elite da Academia das Ciências.[5] O decreto de Allarde de março de 1791 suprimiu em definitivo as corporações de ofícios confirmado pela lei de Chapelier de junho do mesmo ano.[6] A Constituição de 1791 exprime a situação: “não haverá mais jurandes, nem corporações de profissionais, artes e ofícios”.[7] Para os revolucionários franceses, imbuídos de um sentimento de democratização da ciência, que substituitia a “science aristocratique” pela “science démocratique”, este exame técnico estava diretamente ligado à uma visão conservadora e elitista. Charles Gillispie mostra como a filosofia jacobina, por exemplo em Diderot, possuia um forte viés anti newtoniano e anti Lavoisier considerados aristocratas. Pietro Redondi questiona este argumento e entende que a oposição a Lavoisier se dava muito mais em conta pelo fato de ser cobrador de impostos. Como mostra da elitização que revestia o sistema de patentes francês o verbete <privilège exclusif> da Enciclopédia francesa de Diderot e D’Alembert de 1751 se refere a sua utilização sobretudo para os objetos de luxo e objetos de não absoluta necessidade, como por exemplo as cartas patentes concedidas para fabricação dos vidros usados na Galerie des Glaces do Palácio de Versailles. [8]. O exame de patentes era visto como uma referência ao antigo exame das corporações de ofício que exigia uma obra prima do aprendiz[9]. Nuno Carvalho observa que em um certo sentido o exame técnico do pedido de patente substituiu o exame de obra prima do aprendiz que os jurados da corporação de ofício exigiam como condição á sua promoção como mestre [10]. A Academia de Ciência é vista como vestígio do Antigo Regime, sem legitimidade para julgar a contribuição dos inventores para a nação. Em 8 de agosto de 1793 as academias ditas “corpos monstruosos”, “corporações geradas pelo despotismo ao qual estão acostumadas a servir” são dissolvidas.[11]

[1] BONILLA, Luis. Breve historia de la técnica y del trabajo, Madrid:Ed. Istmo,1975, p.201

[2] HOBSBAWM, E. Da revolução industrial inglesa ao imperialismo. Forense:Rio de Janeiro, 1969, p.27

[3] DEYON, Pierre. O mercantilismo, São Paulo: Perspectiva, 1985, p.103

[4] PENROSE, Edith. La economia del sistema internacional de patentes. Mexico:siglo Veiteuno Editores, 1974, p.13

[5] CARVALHO, Nuno Pires de. As origens do sistema brasileiro de patentes – o Alvará de 28 de abril de 1809 na confluência de políticas públicas divergentes – II,. Revista ABPI, Rio de Janeiro. n. 92, p. 10, jan.fev. 2008

[6] http://fr.wikipedia.org/wiki/Jurande

[7] BLANC, Étienne. Traité de la contrefaçon, Henri Plon Editeur:Paris, 1855, p.400

[8] PÉREZ, Liliane Hilaire. L’invention technique au siècle des Lumières. Paris, Abin Michel, 2000, p.39. BELTRAN, Alain; CHAUVEAU, Sophie; BEAR, Gabriel. Des brevets et des marques: une histoire de la propriété industrielle, Fayard, 2001, p. 26, 157, 164

[9] CARVALHO, Nuno Pires. 200 anos do sistema brasileiro de patentes, Rio de Janeiro:Lumen, 2009, p. 32

[10] CARVALHO, Nuno. A estrutura dos sistemas de patentes e de marcas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 101.

[11] BELTRAN, Alain; CHAUVEAU, Sophie; BEAR, Gabriel. Des brevets et des marques: une histoire de la propriété industrielle, Fayard, 2001, p. 116



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