terça-feira, 2 de junho de 2020

A medicina de Galeno

Galeno (129-200) médico dos gladiadores em Roma[1] e especializado no tratamento de feridos, em seus textos questiona a autoridade dos textos de Empédocles e Aristóteles a quem atribui muitos erros em anatomia dos animais. Galeno questiona a forma vaga de muitos destes textos quando se referem as medidas imprecisas de peso dos medicamentos usados.[2] Galeno observa o valor da experiência citando como exemplo o fogo. Como saber se ele queima senão pela experiência ? : “o juiz mais seguro de todos será a experiência somente, e aqueles que a abandonam e raciocinam em outras bases não apenas serão iludidos como destruirão o valor deste tratado”. [3] Galeno escreveu um tratado sobre o pulso e seu uso no diagnóstico de doenças ainda que não tivesse noção da circulação do sangue.[4] Para Galeno segundo sua obra “Da utilidade das partes do corpo”: “As mãos são um instrumento, como a lira é o instrumento do músico, e as tenazes, o do ferreiro [...] toda alma possui graças à sua própria essência certas faculdades, mas sem o auxílio de instrumentos é impotente para realizar o que por natureza tem disposição para realizar”. Mesmo quando se apoia em Aristóteles, Galeno destaca o papel da experiência: “ Se alguém deseja observar as obras da natureza, deve depositar a sua confiança não em livros de anatomia, mas sim nos seus próprios olhos, e procurar-me a mim ou consultar um de meus colegas, ou por si só, laboriosamente praticar exercícios de dissecação, mas enquanto se limitar a ler será mais provável que acredite em todos os antigos anatomistas, porque eles são muitos”.[5] As duas principais descobertas de Galeno sobre a demonstração de que as artérias transportam sangue e não ar e que a rim é um órgão excretor de urina foram feitas com experimentos em animais vivos.[6] No tratado O regime que fluidifica os humores, Galeno enumera diversas ervas medicinais e suas aplicações. Em outra obra Galeno descreve as propriedades medicinais da teriaga[7], medicamento que no período medieval tornou-se um remédio universal aos moldes da pedra filosofal dos alquimistas. O espírito empirista de Galeno é sintetizado por Celso, autor de De res medica[8]do ano 30 d.c.: “é ocioso investigar as causas obscuras e as ações naturais, porque a natureza é impenetrável; e a prova disso é o desacordo reinante entre os que discutem estas questões”. A medicina empírica, portanto, não é o produto do raciocínio mas das experiências.[9]Segundo René Taton, Galeno que se tornou o “unificador da medicina medieval” parte de uma premissa teleológica do funcionamento do corpo humano: o Ser Supremo teria criado todas as partes do corpo de acordo com uma ordem pré estabelecida de modo que a explicação de um fato pode sempre ser alcançado tendo em vista o resultado final que aquele fato produz: “educado por um pai amigo das disciplinas científicas, obcecado pelo rigor da matemática, formado pelos melhores médicos de seu tempo, Galeno esforçou-se por elevar a arte medica ao nível e uma verdadeira ciência”.[10]O pensamento teleológico está presente em Aristóteles, quando por exemplo afirma que a chuva existe para que as plantas possam crescer, de modo que tudo na natureza tem um propósito e existe de tal forma para que este objetivo seja atingido.[11]Para Aristóteles, contestando Anaxágoras, nós temos as mãos porque somos os animais mais inteligentes, ou seja, pelo fato de sermos racionais é que a natureza nos deu as mãos. Segundo Marco Zingano em Aristóteles: “o fim é dado antes e determina o meio [...] Aristóteles realizou estudos altamente sofisticados em Biologia, mas os fez sempre em uma chave teleológica, que foi, em parte justamente por sua causa, tão difícil depois de ser extirpada”.[12]
[1] HALL, Edith. The ancient greeks, London:Vintage, 2015, p.234; BRAGA, Marco; GUERRA, Andreia; REIS, Jose Claudio. Breve historia da ciência moderna, v.I, Rio de Janeiro:Zahar, 2011, p. 86; BYNUM, William. Uma breve história da ciência. Porto Alegre:L&PM Pocket, 2018, p. 40
[2] THORNDIKE, Lynn. A History of magic and experimental science, v.I, Columbia University Press, 1923, p.153
[3] THORNDIKE, Lynn. A History of magic and experimental science, v.I, Columbia University Press, 1923, p.158
[4] BYNUM, William. Uma breve história da ciência. Porto Alegre:L&PM Pocket, 2018, p. 42
[5] BOORSTIN, Daniel. Os descobridores, Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1989, p.319
[6] ABRIL Cultural, Medicina e Saúde. História da Medicina, v.I, São Paulo, 1970, p. 46
[7] MANGOLD, Lydia Mez. Imagens da história dos medicamentos, Basileia:Hoffman La Roche, 1971, p.36
[8] FAGAN, Brian. Los setenta grandes inventos y descobrimentos del mundo antiguo, Barcelona:Blume, 2005, p. 258
[9] TATON, René. A ciência antiga e medieval, tomo I, livro 2, Sâo Paulo:Difusão Europeia, 1959, p. 180
[10] TATON, René. A ciência antiga e medieval, tomo I, livro 2, Sâo Paulo:Difusão Europeia, 1959, p. 188
[11] GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia, São Paulo: Cia das Letras, 1995, p. 126
[12] ZINGANO, Marco. Platão & Aristóteles: o fascínio da filosofia, São Paulo:Odysseus Editora, 2002, p.96

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