domingo, 14 de agosto de 2022

A invenção dos cemitérios

 

João José Reis aponta que as reformas liberais prometidas por Pedro I incluíam que as municipalidades providenciassem a remoção dos mortos das áreas urbanas por questões sanitárias fazendo com que as irmandades e paróquias abandonassem o costume de enterrar seus mortos nas igrejas. Em 1836 um levante popular na Bahia contra a proibição dos enterros nas igrejas ficou conhecido como Cemiterada em protesto contra a lei nº 17 de 1835 que previa monopólio dos enterros a uma companhia privada. As irmandades se queixavam de que com a nova regra e a criação de cemitérios geridos pela iniciativa privada, haveria uma queda de associados, e nas suas rendas, pois a garantia de uma sepultura nos templos era certeza de uma vida bem aventurada no além túmulo. O convento de São Francisco claramente se manifestou contrário a nova lei diante da perda de rendimentos. Os dominicanos anteviam consequências mais graves: “ninguém tomará entusiasmo e gás pelas celebrações dos sacrifícios e exposição dos fatos religiosos e a religião decerto ficará em decadência [...] e a ruína total desta Província e de todo o Império”.[1] Entre as irmandades da Bahia que questionaram a nova lei encontravam-se a Santissimo Sacramento da Rua do Passo, Santíssimo Sacramento do Pilar, Nossa Senhora do Rosário dos Quinze Mistérios, ordens Terceira do Carmo, de São Francisco e de São Domingos. As irmandades alegavam que a nova lei violava a Constituição de 1824 em seu artigo 179 que estabelecia como regra a inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros com base na liberdade, segurança individual e na propriedade. Pela Constituição a única hipótese de estabelecimento de monopólios privados era no caso dos inventores ao qual o parágrafo segundo assegurava o direto de monopólio de suas descobertas.[2] Para aristocracia a sepultura perpétua nas Igrejas garantia a glória da família pelas gerações vindouras já para os escravos uma cova na capela da irmandade dignificava sua morte. Na análise de José Reis: “o surto epidêmico de meados do século XIX serviu como catalisador das mudanças que já vinham lentamente trabalhando a mentalidade do século, inclusive no que diz respeito ao modo de morrer”.[3] No protesto de 1836 uma multidão destruiu o cemitério de Campo Santo em Salvador inaugurado três dias antes por uma empresa privada que recebeu o monopólio do Estado. Apesar da resistência a epidemia de cólera que atingiu uma vasta área do Império em 1855-1856 terminou por levar a um inexorável movimento de secularização dos cemitérios. Em 1855 o cemitério de Campo Santo começou a operar plenamente. Diante do horror da pandemia já não se ouviam protestos contra os enterros nas igrejas, contudo muitos viram a pandemia como uma punição de Deus, de modo que para de certa forma compensar os danos às confrarias foram autorizados cemitérios  na Quinta dos Lázaros onde alguma irmandades e ordens terceiras puderam instalar seus cemitérios mantidos ainda hoje. Com o afastamento de vivos e mortos instaurou-se um “estranhamento entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, acompanhado de um esfriamento das relações das pessoas com o sagrado” o que levou a secularização da mentalidade da época, declínio das irmandades e novas formas de de associação como grêmios literários e associações de classe.



[1] REIS, João José. A morte é uma festa, São Paulo: Cia das Letras, p. 395

[2] REIS, João José. A morte é uma festa, São Paulo: Cia das Letras, p. 386

[3] NOVAIS, Fernando. História da vida privada no Brasil , v.2, São Paulo:Companhia das Letras, 2019. Edição do Kindle, p121



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