segunda-feira, 30 de maio de 2022

A imprecisão da data de nascimento na Idade média

 

Marc Bloch em sua obra A sociedade feudal descreve a chamada “cultura do feudalismo” marcada entre outras características pela indiferença pelo tempo e sua falta de interesse em mensurá-lo acuradamente.[1] O registro de nascimento era transmitido por uma tradição oral por parte dos pais. Um negociante declara em 1299 ter nascido em 1254 “segundo a lembrança de minha mãe”.[2] Os cronistas da época se limitam em geral a se referir a “naquele tempo”, “pouco depois” sem precisar datas[3]. Lucien Febvre destaca que o “tempo do relógio” era muito menos significativo que o “tempo vivenciado” dentro visão de mundo medieval.[4] Segundo Lucien Febvre até a primeira metade do século XVI “reina em todas parte a fantasia, a imprecisão, a inexatidão. A realidade de homens que nem mesmo sabem exatamente a sua idade: são incontáveis os personagens históricos desse tempo  que nos deixam a escolha entre três ou quatro datas de nascimento, às vezes afastados por vários anos”.[5] Em Portugal do século XVII o padre Antonio Vieira, nascido em Lisboa, sabia sua própria data de nascimento, mas não sabia a data de nascimento de irmãos e irmãs, apenas tinha uma estimativa.[6] Marc Bloch cita exemplos de indiferença para com o tempo. Em 1284 foi preciso fazer um inquérito para se determinar a idade da jovem condessa de Champagne, uma das maiores herdeiras do reino dos Capetos, o que revela mais do que um desprezo pela idade, mas um desprezo pela exatidão dos números.[7] Jacques le Goff destaca que na perspectiva medieval o tempo pertence a Deus de modo que captá-lo, medi-lo ou dele tomar vantagem é considerado pecado[8]. Trata-se de um tempo divino e linear que conduz uma visão teleológica da história que se consuma no dia do juízo final.



[1] BURKE, Peter. A escola dos Annales 1929-1989: a revolução francesa da historiografia, São Paulo:Unesp, 1997, p.36

[2] RONCIERE, Charles. A vida privada dos notáveis toscanos no limiar da Renascença. In: ARIÉS, Philippe; DUBY, Georges. História da vida privada: da Europa Feudal à Renascença, v.2, São Paulo:Cia das Letras, 1990, p.267

[3] LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Rio de Janeiro:Vozes, 2016, p. 159

[4] BURKE, Peter. A escola dos Annales 1929-1989: a revolução francesa da historiografia, São Paulo:Unesp, 1997, p.41

[5] KOYRE, Alexandre. Estudos de história do pensamento filosófico. Brasília:Forense,1982, p.283

[6] VAINFAS, Ronaldo. Antonio Vieira. São Paulo: Cia das Letras, 2011, p.28

[7] BLOCH, Marc. A sociedade feudal, Lisboa:Edições 70, 1982, p.96

[8] LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Rio de Janeiro:Vozes, 2016, p. 150



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