sábado, 19 de março de 2022

O zero: invenção de infieis

 

O matemático indiano Brahmagupta no século VII desenvolveu a fórmula para determinação das raízes de uma equação de segundo grau e escreveu regras para se trabalhar com o zero, que era tratado como um número com qualquer outro, definindo, por exemplo, que qualquer número multiplicado por zero é zero: “o produto de shunya multiplicado por uma dívida ou uma fortuna é shunya”.[1] Uma inscrição do século III no templo hindu Chaturbhuj mostra o uso do zero (figura). Até então acreditava-se que o primeiro exemplo registrado do uso do zero era uma inscrição do século IX em uma parede de um templo em Gwalior, na Índia.[2] Segundo Peter Gobets "o zero matemático ("shunya" em sânscrito significa “vazio”) pode ter surgido da filosofia contemporânea de vazio ou Shunyata (uma doutrina budista sobre esvaziar a mente de impressões e pensamentos)".[3] Alex Bellos e William Berlinghoff mostram que os babilônios, antes dos indianos, já representavam um símbolo para ausência de valor nas suas representações numéricas[4]. A possibilidade de um estado de meditação de ausência desinteressada mostra que o conceito do zero já estava presente na metafísica budista[5]. Segundo Lancelot Hogben somente com a invenção do zero pelos hindus a inteligência humana ficou livre do paradigma do ábaco.[6] Gerbert de Aurillac quando teve contato com a matemática muçulmano em sua passagem por Sevilha e Córdoba trouxe os números indo arábicos mas não o zero, por ser considerado desnecessário para manipulação das contas pelo ábaco.[7] No livro Liber Abaci publicado em 1202 Fibonacci introduz na Europa os algarismos indo arábicos “que inclui o sinal 0 que os árabes chamam de zephyr e pode-se escrever o número que se quiser, como será demonstrado”. Os monges cistercienses, por sua vez, rechaçaram o número zero.[8] A palavra zephyr deu origem a palavra chifre em referência ao diabo, por ter sido criação engenhosa dos muçulmanos, ou seja, não cristãos. A palavra árabe sifr foi introduzida na Alemanha no século XIII por Nemorarius, como cifra. Na China, Ch’in Kiu shao em 1274 introduz um símbolo específico para o zero.[9]



[1] ROONEY, Anne. A história da matemática, São Paulo: M.Books, 2012, p.23

[2] https://www.livemint.com/Science/MSxVoPsCyzUQcvUMh10hDN/1800yearold-black-dot-in-Bakhshali-manuscript-is-first-z.html

[3] https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-45608526

[4] BELLOS, Alex. Alex no país dos números, São Paulo: Cia das Letras, 2011, p. 131; BERLINGHOFF, William. A matemática através dos tempos, São Paulo: Blucher, 2010, p.79

[5] LAWLOR, Robert. Geometria sagrada, Lisboa:Edições del Prado, 1996, p.17

[6] HOGBEN, Lancelot. Las matemáticas al alcance de todos. Joaquín Gil: Buenos Aires, 1943, p. 352

[7] IFRAH, Georges. Os números: a história de uma grande invenção. Rio de Janeiro: Globo, 1989, p. 308

[8] LAWLOR, Robert. Geometria sagrada, Lisboa:Edições del Prado, 1996, p.18

[9] EVES, Howard. Introdução à história da matemática, São Paulo:Unicamp, 2004, p.245



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