quarta-feira, 2 de março de 2022

A transmissão cultural da técnica do domínio do fogo

 

Para Carleton Coon o domínio do fogo é o que distingue o homem dos demais animais.[1] Segundo Jean Piveteau: “Não é porque fabrica artefatos que o homo habilis já é humano. Achamos hoje que o artefato precede o homem, que é um fator de hominização porque seu uso desenvolve o cérebro. Então homem porque fabricante de artefatos ou fabricante de artefatos por ser homem ? A pergunta continua sem resposta”.[2] Assim o vestígio de fogo é uma confirmação que se trata de homem e não de um símio.[3] Com a descoberta do fogo o homem controlava pela primeira uma força da natureza, tornava-se conscientemente um criador, como que do nada surge o fogo.[4] Uma hipótese é que o homem tenha percebido o fogo por incêndios provocados por descargas elétricas ou vulcões, ou o tenha produzido acidentalmente enquanto confeccionava artefatos de sílex[5]. Vestígios de fogueiras foram encontradas em sítios arqueológicos como os de Terra Amata[6], perto de Nice, Menez Dregan na Bretanha, Vertessaolos na Hungria ou Chu-Ku-Tien (Choukoutien, Zhoukoudian[7]) na China, próximo de Pequim[8] mostram o domínio do fogo por volta de 400 mil anos[9] com espessas camadas de cinza, ossos queimados e carbonizados próximos a uma provável lareira feita pelo homo erectus e que indica o hábito de cozinhar a carne antes de ingeri-la[10]. Na Europa as evidências mais remotas do uso do fogo datam de 500 mil anos.[11] Em Portugal a Gruta de Aroeira possui vestígios de fogueiras de 400 mil anos, na caverna Bolomor na Espanha de 350 a 100 mil anos, em Biache-Saint-Vaast na França 240 a 170 mil anos, na caverna Tabun em Israel 350 a 320 mil anos. Katharine MacDonald argumenta que a difusão do domínio do fogo e a tecnologia de trabalho em pedra (ou seja, a técnica Levallois desenvolvida há 300 mil anos dominada por neandertais como homo sapiens) por possuírem um rastro de ampla área geográfica mostram uma evidência do surgimento da difusão cultural na evolução da humanidade, indicando que uma característica de comportamento cultural do Homo sapiens estava em vigor neste momento, em um momento de maior tolerância social entre diferentes grupos de hominídios: “O fato que o uso regular do fogo apareceu de forma relativamente rápida em todo o Velho Mundo (Europa) e em diferentes subpopulações de hominídeos sugere fortemente que o comportamento se difundiu ou se espalhou a partir de um ponto de origem em vez de do que foi inventado repetida e independentemente. Evidências adicionais vêm de dados ambientais. Se o produto for de evolução convergente, espera-se que o uso do fogo se correlacione com pressões ambientais. Assim, um cenário poderia ser sugerido em que subpopulações de hominídeos desenvolveram tecnologia semelhante em diferentes lugares em resposta a desafios semelhantes em seus ambientes. Em tal cenário, esperaríamos que a mudança no registro de incêndio para corresponder ou seguir uma mudança que teve efeitos comparáveis em ambientes regionais em toda a área geográfica, provavelmente uma mudança global no clima”.[12] No entanto a mudança ambiental, não parece estar de acordo com uma cenário de evolução convergente, o que sugere a influência de fatores culturais. Este processo de transmissão cultura de técnicas ocorre como reflexo de um novo estágio de organização da sociedade primitiva: “Sugerimos que muito antes do florescimento cultural associado ao final do Pleistoceno Médio e a uma maior extensão dos Períodos do Paleolítico Superior, os hominídeos estavam começando desenvolver as capacidades de complexidade, variabilidade e ampla difusão de tecnologia e comportamento que tendemos a associar apenas ao Homo sapiens”.

[1] ROSS, Norman. The epic of man, Life Magazine, 1962, p. 17

[2] BRISSAUD, Jean Marc. As civilizações pré-históricas. Rio de Janeiro:Ed. Ferni, 1978, p.33

[3] LEROY, Pierre. Breve história do homem de Pequim. In; As origens do Homem: livros de bolso O Correio da Unesco, FGV, 1975, p. 134

[4] CHILDE, Gordon. A evolução cultural do homem, Rio de Janeiro:Zahar, 1966, p.63

[5] HOWELL, Clark. O homem pré-histórico, Rio de Janeiro:José Olympio, 1969, p.80; STEVERS, Martin. A inteligência através dos séculos. São Paulo:Globo, 1946, p.89

[6] GOWLETT, John. Arqueologia das primeiras culturas. Barcelona:Folio, 2008, p.79, 80

[7] NEVES, Walter. Assim caminhou a humanidade, São Paulo:Palas Athena, 2015, p.164

[8] BRISSAUD, Jean Marc. As civilizações pré-históricas. Rio de Janeiro:Ed. Ferni, 1978, p.47; CHILDE, Gordon. A evolução cultural do homem, Rio de Janeiro:Zahar, 1966, p.61; CHILDE, Gordon. O que aconteceu na história, Rio de Janeiro:Zahar, 1977, p.33; ROSS, Norman. The epic of man, Life Magazine, 1962, p. 17

[9] LAFONT, Olivier. A química. In: COTARDIÈRE, Philippe. História das ciências: da antiguidade aos nossos dias, Rio de Janeiro:Saraiva, 2011, p.124; HOWELL, Clark. O homem pré-histórico, Rio de Janeiro:José Olympio, 1969, p.79; CLARK, Grahame. A pré história, Rio de Janeiro:Zahar, 1975, p. 22, 45

[10] LEAKEY, Richard. A evolução da humanidade, Brasília: UNB, 1981, p. 121

[11] CONDEMI, Silvana; SAVATIER, François. Neandertal, nosso irmão, São Paulo: Vestígio, 2018, p. 82

[12] Middle Pleistocene fire use: The first signal of widespread cultural diffusion in human evolution. Katharine MacDonalda; Fulco Scherjona; Eva van Veena; Krist Vaesena; Wil Roebroek. PNAS 2021 Vol. 118 No. 31. https://www.pnas.org/doi/pdf/10.1073/pnas.2101108118



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