sexta-feira, 4 de março de 2022

A certidão de nascimento da ciência moderna segundo Pierre Duhem

 

Para Siger de Brabante (1240-1284): “é preciso concordar com Aristóteles que tudo o que se produz de novo aqui embaixo, seja uma nova energia ou uma nova concepção ou outra coisa, retorna finalmente à esfera e ao movimento da esfera como à sua causa”.[1] Sigério de Brabante defendia as teses averroístas e Aristóteles em torno da eternidade do universo (não haveria criação ex nihilo) e que nossa alma individual não é imortal, mas se extingue com a morte (monopsiquismo).[2] Após Tomás de Aquino ter publicado o livro “Sobre a unicidade do intelecto”, Sigério de Brabante reviu sua posição e retornou à tese da ortodoxia católico em torno da imortalidade da alma, de modo a conter a hostilidade da Igreja às suas posições dentro da Universidade. Para os averroístas tudo no universo está conectado de modo que Deus não poderia fazer a matéria sem o auxílio dos corpos celestiais: “se os céus parassem de se movimentar, o fogo não queimaria a lenha, porque Deus não existiria”. Boécio da Dácia, seguidor de Siger de Brabante em “Sobre a eternidade do mundo” mostra as contradições dos racionalistas com a ortodoxia católica e observa que o argumento teológico deve ser visto de forma separada do argumento racional filosófico, de modo que embora como filósofo reconhecesse a eternidade do mundo, como cristão ele admitia ao mesmo tempo a descrição do Genesis defendida pela ortodoxia católica.  Segundo o prólogo do Syllabus do bispo de Paris de 1277: “Eles [os filósofos averroístas ou tomistas] dizem que certas coisas são verdadeiras segundo a filosofia, embora não o sejam segundo a fé católica, com se houvesse duas verdades contrárias, como se a verdade das Santas Escrituras pudesse ser contradita pela verdade dos textos desses pagãos que Deus condenou”.[3] Segundo José Silveira da Costa com as condenações contra treze proposições do averroísmo em 1270 e ampliadas para 219 proposições em 1277 em Paris (entre as quais vinte proposições extraídas dos livros de Tomás de Aquino) “ficava definitivamente abortada uma das poucas e mais promissoras tentativas de se conquistar a liberdade de pensamento e de investigação filosófica no âmbito do pensamento cristão medieval”.[4] Para Pierre Duhem as condenações das teses racionalilstas dos averroístas aristotélicas marcam a certidão de nascimento da ciência moderna, na medida em que as condenações encorajaram os intelectuais da época em buscar alternativas não aristotélicas da filosofia natural.[5] David Lindberg contudo observa que as condenações tinham aplicabilidade local na Universidade de Paris e não havia uma unidade em torno de um ortodoxia católica sobre tais temas, pois, tal processo estava em construção. De qualquer forma não há como negar que as condenações representaram um golpe contra a autonomia da filosofia diante da teologia e uma vitória da teologia conservadora do século XIII. As condenações incluíam questões relativas a eternidade do mundo, negação da imortalidade da alma individual, monopsiquismo, determinismo, negação da divina providência ou qualquer limitação à onipotência divina (ainda que, por exemplo, não existisse vácuo no nosso universo, Deus poderia a qualquer momento criar um outro universo em que o vácuo existisse, ou mesmo criar o vácuo no nosso universo em uma intervenção milagrosa), negação do livre arbítrio (assim como doutrinas astrológicas de que as ações humanas já estariam determinadas nos astros) e ao naturalismo aristotélico que previa, por exemplo, que um movimento poderia continuar ainda que a primeira causa deste movimento (Deus) cessasse sua participação de modo que o movimento prosseguisse seguindo um curso natural.[6]



[1] GREGORY, Tulio. Natureza. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude. Dicionário analítico do Ocidente medieval. v.II, São Paulo:Unesp, 2017, p. 309

[2] LINDBERG, David C. The Beginnings of Western Science. University of Chicago Press. Edição do Kindle. 2007, p.244

[3] ALESSIO, Franco. Escolástica. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude. Dicionário analítico do Ocidente medieval. v.I, São Paulo:Unesp, 2017, p. 471

[4] COSTA, José Silveira da. A escolástica cristã medieval, Rio de Janeiro, 1999, p.85

[5] LINDBERG, David C. The Beginnings of Western Science. University of Chicago Press. Edição do Kindle. 2007, p.247

[6] LINDBERG, David C. The Beginnings of Western Science. University of Chicago Press. Edição do Kindle. 2007, p.246



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Doação de Constantino

  Marc Bloch observa a ocorrência de falsificações piedosas tais como a pseudo doação de Constantino ( Constitutum Donatio Constantini ) ao ...