sábado, 4 de dezembro de 2021

A Carta Apostólica In Supremo e a escravidão

 

José do Patrocínio era filho de um padre com uma de suas escravas.[1] A própria Companhia de Jesus, teoricamente proibida aos negros e mulatos, contava entre seus membros o neto de uma mulata: o Padre Antonio Vieira.[2] Entre as propriedades da Companhia de Jesus destacava-se a Fazenda Santa Cruz que chegou a ter 1200 escravos que gozavam de significativa autonomia, com permissão de cultivar suas roças, comercializar seus produtos, dispondo de periódicas folgas no trabalho regular para cuidar de seus interesses. Segundo Couto Reis (1804) o sistema jesuítico era “criador, piedoso, econômico, preocupado com a sobrevivência dos escravos chefes de família que deveriam viver contentes, vestir-se e manter suas mulheres, ficando a subsistência dos filhos por conta da fazenda”.[3] Sérgio Macedo observa na fazenda de Santa Cruz os jesuítas mantinham um conservatório musical  cujos alunos eram escravos. Debret em uma de suas telas registra um préstito que acompanhava o senhor português, além de padre e sacristão, e incluía uma banda de músicos negros, soldados, membros de uma irmandade (provavelmente do Santíssimo Sacramento) e transeuntes.[4] Na música, o compositor Joaquim Emérico Lobo de Mesquita era organista, descendente de escravos africanos, membro de uma irmandade de mestiços e de uma irmandade de brancos. O padre jesuíta José Maurício Nunes Garcia Filho nasceu no Rio de Janeiro em 1767, era um mulato filho de um português o alfaiate Apolinário Nunes Garcia com a negra forra Vitória Maria da Cruz e foi nomeado maestro da capela real do Rio de Janeiro e músico prestigiado por D. João VI e que compôs as missas da Conceição, de Nossa Senhora do Carmo, de Santa Cecília e a Pastoril, junto com o Requiem e o Ofício de Finados de 1816, e as Matinas de Finados.[5] O papa Gregório XVI (1831-1846) exorta os cristãos a combater a escravidão “tráfico tão inumano, pelo qual os negros, como se não fossem homens, senão verdadeiros e impuros animais, são comprados, vendidos, etc, e em virtude da autoridade apostólica reprova tais atos, e proíbe aos eclesiásticos e leigos que se atrevam a sustentar como coisa permitida o tráfico de negros”.[6]  Em 1839, o Papa Gregório XVI escreveu a longa Bula “Carta Apostólica In Supremo” Condenando a excomunhão qualquer católico que participasse do tráfico transatlântico de escravos:  “Proibimos e vetamos com a mesma autoridade a qualquer eclesiástico ou leigo defender como lícito o tráfico dos negros, qualquer seja o escopo ou pretexto, e de presumir ensinar outro modo, pública e privadamente, contra aquilo que com a presente carta apostólica expressamos. é nossa solicitude pastoral esforçar-nos para dissuadir completamente os fiéis do desumano mercado dos negros e de quaisquer outros homens.” O documento reafirma declarações anteriores dos Papas Paulo III de 1537, Urbano VIII de 1639 e de Bento XIV em 1741. Segundo Afonso de Taunay, a bula papal de 1839 consegui impedir que a bula papal tivesse valor no Brasil: “A Oligarquia Brasileira tentava de tal modo defender a continuação de um sistema econômico moralmente indefensável, que nem a palavra do Sumo Pontífice Influenciava".[7]




[1] CARVALHO, José Murilo. A construção nacional 1830-1889, Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 26

[2] MATTOSO, Katia M. Queirós. Ser escravo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes. Edição do Kindle, 2016, p.252

[3] NETO, Miranda. Fazenda Santa Cruiz: potência jesuítica 1589-1759. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, a. 24, n. 24, p.45, 2017

[4] NOVAIS, Fernando. História da vida privada no Brasil - Vol.2 (p. 88). Companhia das Letras. Edição do Kindle.

[5] GOMES, Laurentino. Escravidão – Volume II: Da corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada da corte de dom João ao Brasil (p. 235). Globo Livros. Edição do Kindle; MACEDO, Sérgio. Crônica do negro no Brasil, Rio de Janeiro: Reciord, 1974, p. 38 https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Maur%C3%ADcio_Nunes_Garcia

[6] VARNHAGEM, Francisco Adolfo. Memorial Orgânico, Brasília: Funag, 2016, p. 220

[7]  TAUNAY, Afonso. Subsídios para a história do tráfico africano no Brasil, Rio de Janeiro : IHGB, 1938



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