quinta-feira, 21 de outubro de 2021

O mito da democracia racial

 

A Escola Sociológica Paulista da década de 1960, em autores como Florestan Fernandes, reforçou o entendimento de que havia um processo de "coisificação" subjetiva e/ou social dos escravos no Brasil. Gilberto Freire registra anúncios de jornal da capital em 1830 de escravos fugidos em que são tratados como simples animais: “vende-se três escravos, um macho e duas fêmeas, ambas lavadeiras” ou então “vende-se uma escrava crioule de 22 anos parida há três meses e própria para criar”.[1] Em Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, o sociólogo paulista Fernando Henrique Cardoso ao estudar os vaqueiros do Rio Grande do Sul retrata a escravidão na produção de charque e couro em Laguna como sendo um regime regido sobretudo pela violência e o antagonismo entre senhores e escravos, desfazendo o mito de uma suposta democracia racial [2]: “A hipótese sobre a brutalidade corrente nas relações entre senhores e escravos encontra afirmação em inúmeros testemunhos e registros. Além disso, numa sociedade onde o regime patrimonialista de mando era pervertido por causa das condições históricas peculiares, a coerção necessária à manutenção do regime escravocrata teria de exercer-se dentro de padrões que supunham a violência como trato normal [...] A reificação do escravo produzia-se objetiva e subjetivamente. Por um lado, tornava-se uma peça cuja necessidade social era criada e regulada pelo mecanismo econômico de produção. Por outro lado, o escravo autorepresentava-se e era representado pelos homens livres como um ser incapaz de ação autônomica”. Esta perspectiva tem sido ponderada a partir dos anos 1980 por uma abordagem que leve em conta as formas, além da violência pura e simples, que permitiram que a sociedade escravista pudesse se manter por séculos, considerando as diferentes formas de negociação entre senhores e escravos. Busca-se uma aproximação de "um mundo criado pelos escravos na sua permanente negociação com os senhores"[3] Autores como Sidney Chalhoub, Beatriz Galloti Mamigonian, Manolo Florentino e Henrique Espada Lima Filho mostram que o escravo mesmo em um espaço rigidamente delimitado não pode ser visto como um ser inerte, pelo contrário, ele é capaz de engendrar estratégias, planos e ter uma interação com o meio, ou seja, a capacidade de se afirmar na sociedade de algum modo.[4] Para Jacob Gorender[5] (figura) “o escravo não é coisa, mas ser humano levemente limitado por um estatuto social inferior. Tem espaço para se manifestar como agente do ambiente em que convive com os senhores. Não havia razão para muita queixa do destino que lhe coube. Admirável mundo velho”.

[1] FREIRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX, Brasialan v. 370, São Paulo: Ed. Nacional, 1979, p. 47

[2] RUSSELL WOOD, Escravos e libertos no Brasil colônia, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p.100

[3] FONSECA, Marcus Vinícius. Educação dos negros. Bragança Paulista: EDUSF, 2002

[4] FLORENTINO, Luiz Felipe. O escravo no Brasil enquanto figura inerte: uma análise sobre a postura dos cativos e os mecanismos de dominação. Temporalidades Revista de História, UFMG, janeiro 2016

[5] GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990



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