sábado, 18 de setembro de 2021

Alforrias no Brasil colonial

 

Na especialização que havia nos engenhos os escravos mais valorizados eram os que trabalhavam na purga, mestres de açúcar, supervisores, carpinteiros, ferreiros e ferramenteiros.[1] Stuart Schwartz (figura) mostra que o treinamento em ocupações especializadas na indústria de açúcar ou em ofícios como carpintaria, caldeireiro, calafates, carreiros, tacheiros, marinheiros, lenhadores, ferreiros, marceneiros, entre outros[2] permitia o escravo juntar um pecúlio, que poderia usar para compra de sua alforria o que servia como instrumento para adquirir maior produtividade, embora os dados disponíveis indiquem que o número de alforriados sempre foi muito baixo, inferior a 1% [3] e ainda assim o escravo alforriado corria o risco de ser reescravizado.[4] Segundo Robert Slenes no início da década de 1870 a estimativa para “todo o Brasil” de 6,3 escravos alforriados a cada 1000 (ou seja, 0,63%) é para as treze províncias que oferecem dados; para São Paulo e Rio de Janeiro, as estimativas são de 4,8 e 3,4/1000. Estas estimativas são subestimativas, pois os dados oficiais sobre alforrias são menos completos do que os dados sobre população.[5] No convento do Carmo em Salvador há o registro de um escravo alforriado que foi reescravizado por calúnias proferidas quanto a seus antigos proprietários religiosos. [6] John Mawe em visita a Minas Gerais observa que os escravos recebiam um prêmio ao encontrar um diamante: “quando uma gema entre oito e dez quilates é encontrada, o negro recebe duas camisas novas, um terno completo, com chapéu e uma bonita faca”[7], em alguns casos o escravo era alforriado por ter encontrado determinada quantidade ou valor em ouro ou diamantes.[8] Nesses casos conforme previa a legislação em vigor, o proprietário seria indenizado pelas autoridades em 400 mil reis.[9] Por volta de 1780 havia no Brasil cerca de 400 mil negros libertos o que correspondia a cerca de um quarto de toda a população escrava. Em 1800 esse percentual aumenta para 30%.[10] O forro Antonio Alves Guimarães deixou patrimônio avaliado em 412 mil reis[11]. Jorge Caldeira cita a taxa brasileira de alforriados de 5% a meio caminho entre Cuba com 13% e Estados Unidos com 1%.[12] Robert Slenes mostra que a taxa de alforriados no Império (0,63%) era cerca de catorze vezes maiores do que no sul dos Estados Unidos por volta de 1850. Stuart Schwartz destaca o mito ainda persistente de que os arquivos da escravidão foram todos destruídos. A coleção notarial da cidade de Salvador inclui 1.384 volumes que cobrem o período de 1664 a 1915. Apesar de algumas lacunas, a série é virtualmente contínua de 1684 até o fim da escravidão em 1888. Entre 1684 e 1745, 48 por cento (553/1160) das alforrias amostradas foram obtidas mediante pagamento ao proprietário de escravos ou seus representantes legais, de modo que há uma relação direta das alforrias com o preço dos escravos no mercado. Stuart Schwartz mostra que em 3% dos casos estas alforrias foram pagas com outro escravo, o que revela a possibilidade de escravos terem escravos como patrimônio. Segundo Stuart Schwartz: “No contexto da história comparativa da escravidão nas Américas, a considerável iniciativa dos escravos brasileiros em obter sua liberdade pode fornecer alguma pista para a taxa aparentemente mais elevada de alforria no Brasil do que nos Estados Unidos. A chave pode estar não na natureza da escravidão nos vários regimes, mas nos contornos das sociedades construídas sobre a escravidão e na reação dos escravos a ela. Dadas as desvantagens e restrições óbvias sofridas pelos libertos na sociedade escravista norte-americana, as pessoas ainda em cativeiro podem ter feito um cálculo astuto de que os sacrifícios necessários para o acúmulo do preço de auto-compra simplesmente não valiam o resultado final, especialmente porque o processo recompensou o proprietário. Isso não quer dizer que os escravos na América do Norte não quisessem a liberdade, mas sim que eles não viam a compra como um veículo viável para esse fim [...] Os escravos brasileiros com uma gama mais ampla de oportunidades como libertos estavam mais dispostos a perseguir esse objetivo por meio da compra. Obviamente, este argumento é hipotético, mas pelo menos desloca a discussão da alforria de uma consideração exclusiva das diferenças culturais dos proprietários de escravos para a inclusão das percepções e iniciativas dos escravos, em resposta aos regimes criados por demográficos, econômicos, e fatores culturais”.[13]



[1] GOMES, Laurentino. Escravidão, v.I, São Paulo: Globo, 2019. p.326

[2] CALDEIRA, Jorge. A nação mercantilista, São Paulo:Ed. 34, 1999, p. 77

[3] GOMES, Laurentino. Escravidão v. II, Rio de Janeiro:GloboLivros, 2021, p. 19

[4] SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Cia das Letras, 1988, p. 275; NOVAIS, Fernando. História da vida privada no Brasil , v.2, São Paulo:Companhia das Letras, 2019. Edição do Kindle, p.322

[5] NOVAIS, Fernando. História da vida privada no Brasil , v.2, São Paulo:Companhia das Letras, 2019. Edição do Kindle, p.237

[6] GOMES, Laurentino. Escravidão, v.II, São Paulo: Globo, 2021. p.232

[7] GOMES, Laurentino. Escravidão, v.II, São Paulo: Globo, 2021. p.211; BOXER, Charles. A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial. São Paulo:Cia Editora Nacional, 1969, p. 235

[8] GOMES, Laurentino. Escravidão, v.II, São Paulo: Globo, 2021. p.231

[9] GOMES, Laurentino. Escravidão, v.II, São Paulo: Globo, 2021. p.234

[10] GOMES, Laurentino. Escravidão, v.II, São Paulo: Globo, 2021. p.227

[11] PRIORE, Mary del. Histórias da gente brasileira, v.1 Colônia.Rio de Janeiro:Leya, 2016, p. 103

[12] CALDEIRA, Jorge. História do Brasil com empreendedores, São Paulo:Mameluco, 2009, p.229

[13] SCHWARTZ, Stuart. The Manumission of Slaves in Colonial Brazil: Bahia, 1684-1745 . Hispanic American Historical Review (1974) 54 (4): 603–635. https://doi.org/10.1215/00182168-54.4.603




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