sábado, 31 de julho de 2021

Os povos bárbaros

 

Considerando que os povos ditos bárbaros tem em sua maioria origem entre os germanos, a historiografia alemã do século XIX até hoje prefere denominar “migrações dos povos” (Völkerwanderung) ao invés de migrações de povos bárbaros.[1] Humphrey Kitto mostra que a palavra grega “bárbaros” não significava “pessoas que vivem em cavernas e comem carne crua” apenas significa povos não helênicos que produzem sons como “bar bar” em vez de falarem grego, como por exemplos os egípcios.[2] A designação de “bárbaros” ou “berberes” já era usada pelos romanos aos povos africanos não helênicos[3]. Na antiga Suméria e Babilônia “barbaru” significava “estrangeiro”[4]. Entre os gregos no século VIII a.c. os povos estrangeiros eram chamados de barbaroi porque seu idioma soava como um balbuciar incompreensível.[5] O filósofo Giorgio Agamben recorda que, segundo o apóstolo Paulo, “se não conheço a força da linguagem, serei como um bárbaro para aquele que fala e aquele que fala será um bárbaro para mim” (1 Cor. 14,11). Para o filósofo italiano, o termo bárbaro remete a um ser não dotado de logos, um estrangeiro que realmente não consegue entender nem falar. Βάρβαρος. O historiador Amiano Marcelino descreve os bárbaros invasores: “com uma faca, marcam a face dos meninos recém nascidos, para que não cresça a barba sobre a cicatriz. São muito feios e encurvados. Passam o dia e a noite montados em seus cavalos, disformes mas fortes, sobre os quais combatem, compram e vendem. Comem, bebem, dormem e sonham agarrados ao pescoço de seus cavalos. São guerreiros ferozes, que provocam grandes estragos”.[6] Paulo era hebreu (Flipenses 4:5) mas por ter levado o evangelho aos não judeus tornou-se conhecido como o “apóstolo dos gentios” (Atos 15:7). Segundo Robert Fossier esta divisão foi o fundamento da hostilidade dos medievais aos estrangeiros.[7] Alessandro Cavagna mostra que a Europa germânica do século IV de povos como ostrogodos, visigodos, suevos, burgúndios, lombardos entre outros uma ocupação mais elaborada dos solos com uso de utensílios aperfeiçoados na agricultura, técnicas mais rentáveis de extração do ferro e refinamento das técnicas de cerâmica e ourivesaria.[8] O escritor cristão Salviano no século V descreve os povos bárbaros: “os godos mentem mas são castos, os francos mentem  mas são generosos, os saxões são selvagens em crueldade mas admiráveis em castidade. Que esperança pode haver para os romanos, se os bárbaros são mais puros do que eles ? “[9] Amiano Marcelino descreve os hunos como de “pescoços grossos, e são tão prodigiosamente disformes e feios que os poderíamos tomar por animais bípedes”.[10] Paulo Miceli observa que muitos bárbaros já faziam parte dos próprios exércitos romanos: “seria mais certo dizer que esta história começa com a migração dos povos germânicos, pois bárbaros era a denominação que os romanos davam a todos os que não faziam parte de seu império”.[11] Marc Bloch (na figura) mostra que as invasões normandas e sarracenas haviam criado um ambiente de insegurança que levou a destruição dos campos, pilhagens e saques nas cidades com impacto direto na cultura. Marc Bloch mostra que na baixa Idade Média “o homem vivia então em estado de perpétua e dolorosa insegurança. Não era, como hoje, a angústia do perigo atroz, coletivo e intermitente, que um mundo de nações em armas contém. Nem tão pouco, ou, pelo menos, não era o principal, a apreensão das forças econômicas que esmagam o pobre ou o mal afortunado. A ameaça, que era de todos os dias, pesava sobre cada destino individual, atingindo, não só os bens, como a própria carne [...] A violência imperava também no mais profundo da estrutura social e da mentalidade”. [12] No prefácio da Regra Pastoral de Gregório Magno, o rei Alfredo evoca dolorosamente  o tempo em que, antes que tudo fosse devastado ou queimado, as igrejas inglesas estavam recheadas de tesouros e de livros”.[13] Segundo Marc Bloch: “é certo que as incursões árabes, húngaras ou escandinavas não detêm toda a responsabilidade da apreensão que pesava sobre os espíritos, mas cabia-lhes uma larga parte dela”. Robert Fossier aponta para outro aspecto que motivava a se viver junto, a expectativa de uma inevitável vinda do juízo final dos tempos para o juízo final.[14]



[1] PONTESILLI, Massimo. As migrações dos bárbaros e o fim do império romano do occidente. Cf. ECO, Umberto. Idade média: bárbaros, cristãos e muçulmanos, v.I, Portugal:Dom Quixote, 2010, p.60-61

[2] KITTO, Humphrey Davey Findley. Os gregos. Coimbra:Armenio Amado, 1970, p. 12

[3] WENDT, Herbert. Tudo começou em Babel, São Paulo:Difusão, 1962, p. 45

[4] HALL, Edith. The ancient greeks, London:Vintage, 2015, p.22

[5] STANDAGE, Tom. História do mundo em 6 copos, Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 47

[6] DEARY, Terry. Terríveis romanos. São Paulo:Melhoramentos, 2002, p. 61; MENDES, Chico; VERÍSSIMO, Chico; BITTAR, William. Arquitetura no brasil de Cabral a Dom João VI, Rio de Janeiro;Imperial Novo Milênio, 2009, p. 12

[7] FOSSIER, Robert. As pessoas da idade média, Rio de Janeiro: Vozes, 2018, p. 236

[8] CAVAGNA, Alessandro. Os povos germânicos. Cf. ECO, Umberto. Idade média: bárbaros, cristãos e muçulmanos, v.I, Portugal:Dom Quixote, 2010, p.65-66

[9] FREMANTLE, Anne. Idade da fé. Biblioteca de História Universal Life. Rio de Janeiro:José Olympio, 1970, p.14

[10] MICELI, Paulo. O feudalismo, São Paulo: Atual, 1986, p. 12

[11] MICELI, Paulo. O feudalismo, São Paulo: Atual, 1986, p. 11

[12] BLOCH, Marc. A sociedade feudal, Lisboa:Edições 70, 1982, p.451

[13] BLOCH, Marc. A sociedade feudal, Lisboa:Edições 70, 1982, p.59

[14] FOSSIER, Robert. As pessoas da idade média, Rio de Janeiro: Vozes, 2018, p. 188



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