terça-feira, 1 de junho de 2021

O misticismo espanhol e o descobrimento da América

 

Bruneto Latini (1230-1294) que inspirou a obra de Dante sobre o Inferno, escreveu em Tesoretto sobre a existência de uma pátria habitada por criaturas disformes e espantosas como homens com os pés apontando para trás e com oito dedos em cada pé, ou com olhos nos ombros e alguns de um olho só bem no meio da testa. O mapa de Andrèa Bianco em 1436 mostra ao lado do paraíso, no oriente da Àsia, homens sem cabeça e com os olhos e a boca no peito[1]. Sérgio Buarque de Holanda em Visões do Paraíso ao comentar a frequência com tais estórias sobre o paraíso estão presentes antes da descoberta das Américas, o que parecia se confirmar com a visão de índios nus, florestas virgens e papagaios falantes, escreve: “A frequência com que até em mapas itinerários surgem essas figuras indefectivelmente vinculadas à paisagem edênica (o jardim do Éden) faz crer que correspondessem a um sentir geral, porventura nascido de tradições anteriores ou alheias à própria difusão do cristianismo”[2]. Ao analisar o misticismo espanhol Oliveira Martins observa que este foi o fator motivador que impulsionou os espanhóis à conquista da América do século XVI: “Essa história é um milagre sim, de energia humana. O misticismo é o foco onde essa luz se concentra, é a fonte de onde brotam a ação, a força, a extraordinária fé na invencível vontade humana”.[3] Para Sergio Buarque de Holanda, dentro de uma perspectiva fundamentada na história das mentalidades, mostra que tais estórias estão bem mais presentes nos textos dos colonizadores espanhois do que nos portugueses o que revela um aspecto mais pragmático dos portugueses que já haviam terminado há dois séculos sua Reconquista quando se lançaram nas navegações ultramar no século XVI[4]: “O gosto da maravilha e do mistério quase inseparável da literatura de viagens na era dos grandes descobrimentos ocupa espaço singularmente reduzido dos escritos quinhentistas portugueses sobre o Novo Mundo”.[5] O castelhano, por outro lado, era mais retórico, metafórico, mais afeito às elocubrações em torno do inverossímil e do fantástico, por exemplo na busca do paraíso terrestre[6]. Fatores como a amenidade das condições climáticas, a abundância de recursos naturais e a inexistência de doenças seriam fortes indicativos para os espanhóis de que na América, se encontraria o Paraíso bíblico. Sergio Buarque de Holanda argumenta que a maior parte dos mitos edênicos difundidos durante a conquista ibérica foram criações castelhanas e que uma vez difundidos tais mitos entre os portugueses, tais criações perdiam seu vigor ou mesmo deturpados. Tais criações, contudo não se restringiam ao mundo ibérico. O inglês Walter Raleigh, em 1600 descreve a presença de Ewaipanomas (na figura) seres sem cabeça na Guiana próximo ao Orinoco.[7]

[1] HOLANDA, Sérgio Buarque. Visões do Paraíso, São Paulo;Brasiliense, 1994, p. 18

[2] HOLANDA, Sérgio Buarque. Visão do Paraíso. São Paulo:Brasiliense, 1994, p. 19, 215

[3] MARTINS, Oliveira. História da civilização ibérica, Lisboa: Guimarães Editores, 1994, p. 222

[4] AIROLA, Jorge Magasich; BEER, Jean Marc. América mágica, Rio de Janeiro: Paz e terra, 2000, p. 281

[5] HOLANDA, Sérgio Buarque. Visões do Paraíso, São Paulo: Brasiliense, 1992, p.1

[6] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visões do paraíso, São Paulo:Brasiliense, 2000, p. 445

[7] AIROLA, Jorge Magasich; BEER, Jean Marc. América mágica, Rio de Janeiro: Paz e terra, 2000, p. 248




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