segunda-feira, 5 de abril de 2021

Positivismo e a "paisanização" do ensino militar

 

Luiz Otávio Ferreira mostra que ao final do século XIX no Brasil o positivismo foi a matriz ideológica que formava um ethos da intelectualidade brasileira.[1] Para Caio Prado Júnior: “pode-se dizer que o positivismo forma o único corpo de ideias mais ou menos completo e coerente que existiu no Brasil na segunda metade do século passado”.[2] Para João Camilo Torres o ideal científico se contrapõe ao ideal militar, como já apontado por Comte (“para Comte reis e soldados são coisas do estado teológico militar”) e tal união no Brasil levou ao detrimento da velha tradição militar e a uma dissolução dos ideais militares e do espírito guerreiro uma vez que o positivismo era claramente antimilitarista.[3] Para Severino Sombra “as ideias de Comte exerceram lamentável influência nas classes armadas, concorrendo para uma paisanização funesta e um revoltante desapego às nossas tradições militares [...] a secreta incompatibilidade entre os espírito científico e o espírito militar indicada por Comte viciou horrivelmente o ensino em nossas escolas militares, arrancando-lhes o caráter essencial dos centros de educação militar, de formação intelectual e moral para a guerra”. [4] Segundo João Camilo Torres na obra O positivismo no Brasil de 1943: “O positivismo surgiu no Brasil para preencher uma lacuna, a que fora aberta em nossa cultura pela ausência de uma filosofia elaborada racionalmente e segundo critérios seguros. Era uma concepção do universo e dos valores elaborada sistemática e rigorosamente e, ao mesmo tempo, irrefutável. Ora, nós não possuíamos então nem ao menos uma teoria do estado exequível, quanto mais uma posição filosófica séria e estável. Possuindo, além disto, o positivismo um grande e acentuado poder construtivo, falava muito de perto a tendências futuras da alma brasileira”[5] Leonardo Trevisan mostra que mais do que a ênfase em matemática o que possibilitou a penetração nos meios militares foi a sua proposta de “verdade absoluta, inquestionável, científica, matematicamente demonstrada” o que se adequava a visão de mundo ordeira, racional e inquestionável e que confirmava a disciplina do meio militar[6]. Os homens do Apostolado se colocavam numa aura de santidade. Segundo Cruz Costa: “para regenerar o mundo eram necessários, antes de tudo santos, e não somente sábios”.[7] Para João Camilo o positivismo deturpou o ensino militar “arrancando-lhes o caráter essencial de centros de educação militar, de formação intelectual e moral para a guerra”.[8] Para Deodoro da Fonseca o positivismo era “um elemento perturbador da tradição nacional dentro da própria classe militar [...] uma seita filosófica abstrusa”. [9] Em System de politique positive, Augusto Comte suprimia todo e qualquer ensino militar e reduzia as forças armadas a um papel de mera polícia, que em caso de agressão externa seria a base do “Exército Patriótico”. Numa formação de cadetes engenheiros da Escola Superior de Guerra o positivista Benjamin Constante demonstrava a irracionalidade do fenômeno bélico e terminava seu discurso pedindo a deposição das armas que deveriam ser peças de museu para que as gerações vindouras admirassem com horror os tempos de barbárie.[10] Cruz Costa contudo rejeita a tese de que esta “paisanização” no ensino militar tenha sido causada pelo positivismo, mas sim por uma política do imperador filósofo: “Se nossa Escola Militar foi, durante certo tempo, uma simples escola de engenheiros, em que os que tinham vocação para professores de matemática perdiam inteiramente o espírito bélico, as verdadeiras causas dessa tão falada paisanização das nossas classes armadas, sobretudo do Exército, são devidas a razões talvez mais profundas. O Positivismo, tão contrário a privilégios e a títulos, não foi o fomentador da enorme messe de majores-doutores, de coronéis-doutores, tão criticados por Lima Barreto. O próprio Eduardo Prado, pouco simpático à república e menos ainda ao Positivismo, reconheceu que o governo monárquico cometeu um erro imenso deixando ao ensino militar o seu caráter exclusivamente teórico. O Sr. D. Pedro II, tão ocupado das ciências, não fez senão abacharelar o oficial do exército que agora [1890] naturalmente revela um tão pronunciado furor politicante, discursante e manifestante".[11]



[1]FERREIRA, Luiz Otávio. Os Politécnicos: ciência e reorganização social segundo o pensamento positivista da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, 1862-1922., Dissertação Mestrado Sociologia e Antropologia, UFRJ, 1989

[2] JUNIOR, Caio Prado. Evolução política do Brasil e outros estudos, Rio de Janeiro:Brasiliense, 1972, p.199

[3] TORRES, João Camilo. O positivismo no Brasil, Brasília: Câmara dos Deputados, 2018, p.86, 89

[4] TORRES, João Camilo. O positivismo no Brasil, Brasília: Câmara dos Deputados, 2018, p.40, 242

[5] MESQUITA, André Campos. Augusto Comte, sociólogo e positivista, São Paulo:Lafonte, 2013, p. 120; TORRES, João Camilo. O positivismo no Brasil, Brasília: Câmara dos Deputados, 2018, p.37

[6] TREVISAN, Leonardo. Obsessões patrióticas, Rio de Janeiro: Bibliex, 2011, p. 57

[7] TREVISAN, Leonardo. Obsessões patrióticas, Rio de Janeiro: Bibliex, 2011, p. 59

[8] TREVISAN, Leonardo. Obsessões patrióticas, Rio de Janeiro: Bibliex, 2011, p. 54

[9] TREVISAN, Leonardo. Obsessões patrióticas, Rio de Janeiro: Bibliex, 2011, p. 71

[10] TREVISAN, Leonardo. Obsessões patrióticas, Rio de Janeiro: Bibliex, 2011, p. 71

[11] LINS, Ivan. História do positivismo no Brasil, Rio de Janeiro: Brasiliana, 1926, p.413



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Doação de Constantino

  Marc Bloch observa a ocorrência de falsificações piedosas tais como a pseudo doação de Constantino ( Constitutum Donatio Constantini ) ao ...