sábado, 10 de abril de 2021

A zona tórrida e a espada flamejante do Genesis

 

A obra de Sacrobosco Tractatus de Sphaera Mundi foi publicada em Ferrara em 1472 e teve mais de 70 edições tornando-se um livro texto de grande difusão até o século XVII: [1] “que a terra também é redonda aparece assim. Os signos e as estrelas não surgem e se põem igualmente para todos os homens que estão em todos os lugares, mas primeiramente surgem e se põem para aqueles que estão para o oriente e surgem e se põem mais tarde para os outros [...] Além disso se a terra fosse plana do oriente para o ocidente, as estrelas surgiriam tão cedo para os orientais quanto para os ocidentais, o que é falso”.  Para Sacrobosco em seu Tratado da Esfera, com prestígio no século XVI mesmo após as navegações portuguesas no Brasil e na Guiné [2], tanto na região equinociais próxima ao equador (“zona tórrida” devido a quentura do sol pela incidência dos raios em noventa graus diante da esfericidade da Terra) como dos pólos por serem regiões muito frias, a terra esférica seriam desabitada. A ideia de uma zona tórrida inacessível está presente no livro segundo de Meteoro de Aristóteles. Para Tomás de Aquino (Suma Teológica II:II:164:2)[3] a razão para existência de tal zona tórrida tornando inacessível o paraíso terrestre tinha fundamento nas escrituras (Genesis 3:24 “Deus baniu Adão e Eva e no lado leste do jardim do Éden estabeleceu seus querubins e uma espada flamejante que se movia em todas as direções, evitando assim que alguém tivesse acesso à árvore da vida”) e se baseia em Agostinho que diz (Gen. ad lit. xi, 40): "Deve-se acreditar que mesmo no paraíso visível isso foi feito por poderes celestiais de fato, de modo que havia uma guarda de fogo colocada lá pelo ministério dos anjos." Com as navegações do século XVI Frei Vicente Salvador irá concluir: “donde se responde ao argumento de Aristóteles, que o sol esquenta mais na zona tórrida que na temperada, é que tal intensidade de calor se modera com os ventos frescos do mar e umidade da terra, junto com a frescura do arvoredo de que toda a terra está coberta, de tal sorte que a habitam vivem alegremente”. [4] O Regimento de Munich e o Tratado da Spera do Regimento de Évora de 1517 reproduziam os mesmos conceitos de Sacrobosco. Pedro Nunes na sua tradução da obra de Sacrobosco em 1537 comenta: “As navegações dos portugueses nos mostraram que não há terra tão destemperada, por quente nem por fria, em que não haja homens”. Duarte Pacheco em seu Esmeraldo de 1506 comenta este argumento da inabitabilidade dos pólos e das regiões equatoriais pela quentura do Sol: “tudo isso é falso, certamente temos muita e muita razão de nos espantar de tão excelentes homens, como esses fora, e assim Plínio e outros autores, que isto mesmo afirmaram, caíram em tamanho erro como neste caso disseram, porque eles mesmo confessam a Índia ser verdadeiramente oriental  e povoada de gente sem número, e que como é com o oriente, também seja com o círculo equinocial, que passa pela Guiné e pela Índia e com a maior parte dela tenha vizinhança, claramente ser falso o que escreveram, poi debaixa da mesma equinocial há tanta habitação de gente quanto temos sabida e praticada, e como quer que a experiência  é mãe das coisas, por ela soubemos radicalmente a verdade”. [5] Luís de Albuquerque se refere a trechos do Esmeraldo de uma credulidade quase ingênua o que coloca Duarte Pacheco numa área de transição entre o conhecimento antigo e a ciência moderna. Duarte Pacheco se refere a “experiência” não como fruto de um experimento planejado em laboratório mas o resultado de observação ou prática.[6]



[1] MOURÃO, Ronaldo Freitas. Dicionário Enciclopédico de astronomia e astronáutica, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987, p. 698

[2] ALBUQUERQUE, Luis de. Introdução à história dos descobrimentos portugueses, Lisboa:Europa América, 1959, p. 107

[3] https://en.wikisource.org/wiki/Summa_Theologiae/Second_Part_of_the_Second_Part/Question_164

[4] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visões do Paraíso. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 356

[5] VASCONCELLOS, Ernesto; GAMEIRO, Alfredo; MALHEIROS, Carlos. In: História da Colonização Portuguesa no Brasil, Edição Monumental Comemorativa do Centenário de Independência do Brasil, Porto, Litografia Nacional, 1921, capítulo 2 A arte de navegar dos portugueses, p. 63

[6] ALBUQUERQUE, Luís de. Ciência e experiência nos descobrimentos portugueses, Lisboa: Biblioteca Breve, 1983, p. 80



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