sábado, 20 de fevereiro de 2021

O purgatório e o espírito do capitalismo

 

Marc Bloch observa que os romances e poemas líricos do século XII passam a não apenas narrar fatos mas analisar sentimentos. [1] Segundo Philippe Braunstein [2]: “para que se afirme definitivamente o romance de uma vida, para que as últimas reticências em se mostrar o íntimo em pintura sejam apagadas, era preciso que triunfasse o sentimento de que o homem deve mais a seus próprios esforços do que às suas origens ou á proteção divina”.  Philippe Faure mostra que uma marca da descoberta do indivíduo no século XII é o culto do anjo da guarda que se observa nesta época.[3] Jacques le Goff mostra que a criação do purgatório no final do século XII ao implica na avaliação da conduta do cristão trata de um “sinal inegável de um processo de individualização”.[4] De acordo com o II Concílio de Lião (1264) “Se os cristãos que tenham pecado falecerem realmente possuído de contrição e caridade, antes, porém, de ter feito dignos frutos de penitência por suas obras más e por suas omissões, suas almas, depois da morte, são purificadas pelas penas purgatórias ou catartéticas”. Na Constituição Benedictus Deus do papa Bento XII (1336) “as almas dos fiéis falecidos dado que nada tenha havido a purificar quando morreram ou nada haja a purificar quando futuramente morrerem ou, caso tenha havido algo a purificar, uma vez purificados aos a morte, essas almas, logo depois da morte e da purificação de que precisam foram e estarão no ceu”.[5] Para Jacques le Goff este processo de individualização se reflete paralelamente na definição do tempo: “com a afirmação do indivíduo, o tempo torna-se, segundo o arquiteto e humanista Alberti, no começo do século XV, um de seus bens mais preciosos, aguardando a aparição do relógio individual no fim do século XV”.[6] Jean Gimpel refere-se ao século XIV como o início da era do relógio mecânico.[7] Para Jacques le Goff outra dimensão do surgimento do Purgatório é sua relação com a flexibilização da usura: “O purgatório não é decididamente apenas um aceno que o cristianismo dá ao usurário no século XIII, mas o único meio que lhe assegura o Paraíso sem restrição [..] A esperança de escapar ao Inferno, graças ao Purgatório, permite ao usurário fazer avançar a economia e a sociedade do século XIII em direção ao capitalismo”.[8]



[1] BLOCH, Marc. A sociedade feudal, Lisboa:Edições 70, 1982, p.130

[2] BRAUNSTEIN, Philippe. Abordagens da intimidade nos séculos XIV-XV. In: ARIÉS, Philippe; DUBY, Georges. História da vida privada: da Europa Feudal à Renascença, v.2, São Paulo:Cia das Letras, 1990, p.546

[3] FAURE, Philipppe. Anjos. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude. Dicionário analítico do Ocidente medieval. v.I, São Paulo:Unesp, 2017, p. 87

[4] LAUWERS, Michel. Morte e mortos. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude. Dicionário analítico do Ocidente medieval. v.II, São Paulo:Unesp, 2017, p. 276

[5] BETTENCOURT, Estevão. Diálogo ecumênico, Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1984, p.144

[6] GOFF, Jacques le. Tempo. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude. Dicionário analítico do Ocidente medieval. v.II, São Paulo:Unesp, 2017, p. 604

[7] PERNOUD, Régine. Idade Média: o que não nos ensinaram, Rio de Janeiro:Agir, 1994, p. 164

[8] LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida, São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 90


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