segunda-feira, 8 de junho de 2020

Pitágoras e a irracionalidade da raiz quadrada de dois

Para os gregos a paideia representa a cultura, a formação ou educação do corpo e do espírito dos membros da sociedade.[1] Para Werner Jaeger: “A harmonia exprime a relação das partes com o todo. Está nela implícito o conceito matemático de proporção que o pensamento grego se figura em forma geométrica e intuitiva. A harmonia do mundo é um conceito complexo em que estão compreendidas a representação da bela concordância dos sons no sentido musical e a do rigor dos números, a regularidade geométrica e a articulação tectônica. È incalculável a influência da ideia de harmonia em todos os aspectos da vida grega dos tempos subsequentes. Abrange a arquitetura, a poesia, a retórica, a religião e a ética [...] Só se une o que se opõe; é do diverso que brota a mais bela harmonia”.[2] Tendo o número como a base do mundo real “a recomendação prática de Pitágoras consiste em medir, para assim se exprimir a qualidade em termos quantitativos numericamente determinados”. Moses Finlay conclui: “os pitagóricos, também, apesar de todo o seu misticismo, conduziram seus interesses, em ondas e impulsos rítmicos, a consequências muito práticas e tecnicamente importantes”.[3]Porfírio, contudo, destaca que as ideis de Pitágoras eram baseadas no princípio do retorno periódico, ou seja, a ideia de que nada é absolutamente novo.[4] Peter Gorman mostra que Pitágoras era propenso à superstição, como a relatada por Aristóteles acerca do som do gongo de bronze que Pitágoras atribui a voz de um daimon oculto no metal[5], ou sua proibição de se comer feijões uma vez que se desenvolvem assemelhando-se a um embrião humano, uma rejeição com origem em sua estadia no Egito quando foi iniciado nos mistérios egípcios.[6] O papiro Bremmer Rhind mostra o conceito de que o Deus Atum criou as formas conhecidas de tudo o que deveria tomar forma no mundo visível, ou seja, tais formas primordiais já existiam na mente do Criador, um conceito que remete as teses idealistas de Platão.[7]
Whitehead observa que os seguidores de Aristóteles se afastaram desta perspectiva ao aconselhar os físicos a classificar ao invés de medir. Os números eram constituídos de unidades e, portanto, quaisquer núemro seria sempre múltiplo da unidade. Os ditos números irracionais, no grego significava número sem medida, ao invés de número sem razão, e estes não se ajustavam a teoria pitagórica, porque não podiam ser representados pela razão de números inteiros.[8] René Taton admite que a descoberta dos números irracionais de fato pode ter sido causa de escândalo entre a escola dos pitagóricos por contradizer seus princípios.[9]A conclusão de irracionalidade da raiz quadrada de dois, por exemplo, mostra a lógica grega como instrumento de análise. Considere que a raiz quadrada de dois possa ser escrita como um número racional, ou seja, exista p e q inteiros tal que raiz quadrada de dois é igual a p/q na forma reduzida. Neste caso p e q não podem ser ambos pares caso contrário sempre será possível dividir ambos por dois e se chegar a uma forma mais reduzida. Considere que p seja ímpar. Ao elevarmos a fração ao quadrado teremos 2q2 = p2 mas como sabemos que p é ímpar e o quadrado de um ímpar também é ímpar então isto não pode ser possível pois se no primeiroa lado da equação estamos multiplicando por dois então este número teria de ser par. Assim p não pode ser ímpar. Agora assuma que p é par e que ele, portanto, assuma a forma p=2m assim 2q2 =4m2 ou seja q2=2m2, ora mas sabemos que uma vez que p é par então q é impar e na equação temos um número ímpar igual a um número par o que novamente não é possível. A conclusão deste raciocínio lógico é que não se consegue descobrir p e q inteiros e, portanto, a raiz de dois é um número irracional. Se os números naturais, que para os pitagóricos constituíam a essência da realidade, nem sempre servissem para encontrar a medida das coisas do mundo real, tampouco eram o meio de conquistar o conhecimento divino. Howard Eves se refere a uma lenda pela qual o pitagórico Hipaso do Metaponto foi lançado ao mar (numa versão) ou banido da comunidade por revelar o segredo de que haviam números irracionais (noutra versão).[10]
[1] CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia, São Paulo: Ática, 2004, p. 245
[2] JAEGER, Werner. Paideia, São Paulo:Ed. Herder, 1936, p.192, 210
[3] FINLEY, Moses. Economia e sociedade na Grécia antiga, São Paulo:Martins Fontes, 2013, p. XXV, 204
[4] GORMAN, Peter. Pitágoras, uma vida, São Paulo:Círculo do Livro, 1993, p. 33
[5] GORMAN, Peter. Pitágoras, uma vida, São Paulo:Círculo do Livro, 1993, p. 44
[6] GORMAN, Peter. Pitágoras, uma vida, São Paulo:Círculo do Livro, 1993, p. 47, 69
[7] CLARK, Rundle. Símbolos e mitos do Antigo Egito, São Paulo:Hemus, (s.d.), p.85
[8] RUSSELL, Bertrand. História do pensamento ocidental, Rio de Janeiro:Nova Fronteira,2016, p.58
[9] TATON, René. A ciência antiga e medieval, tomo I, livro 2, Sâo Paulo:Difusão Europeia, 1959, p. 33, 35; SOUZA, José Cavalcante. Os pré socráticos: fragmentos, doxografia e comentários. Coleção os pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1985, p. XIX
[10]EVES, Howard. Introdução à história da matemática, São Paulo: Unicamp, 2004, p. 107
Pitágoras segundo quadro de Rafael

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